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Curso: Transformações – XII Jornada Psicanálise: Bion 2019 – 26 e 27 Abril SBPSP

  • achusterblog
  • 7 de mar. de 2019
  • 60 min de leitura

Atualizado: 30 de ago. de 2021


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Introdução


A quantidade e a abrangência de questões complexas do texto Transformações (1965) faz com que seja considerado por muitos o mais difícil da obra de Bion, apresentando-se como um permanente desafio para o leitor [1].


O texto faz parte de um trajeto que tem início na Teoria do Pensar (1962a) e se desdobra com Aprender da Experiência (1962b), Elementos de Psicanálise (1963), até chegar a Notas sobre Memória e Desejo (1967), e então aflora numa “versão americana” em Atenção e Interpretação (1970). A relação entre os textos é explicitada por Bion quando diz que desistiu de escrever Transformações para que pudesse ser lido de forma independente dos anteriores.


Costumo representar este trajeto pela imagem de uma ponte (Pons Asinorum) _ na qual o texto Transformações é a última parte onde a maioria das pessoas costuma desistir ou não conseguir passar.


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O termo Pons Asinorum (mata-burros) era uma expressão usada por Euclides na Antiga Grécia. Ele explicitava que a condição sine qua non para seus alunos continuarem estudando era demonstrar a sua quinta proposição sobre o triângulo isósceles. Todavia, a proposição tinha uma contrapartida de significado sexual na cultura grega antiga (era popularmente usado como uma “ gíria” do ângulo necessário para se ter uma relação sexual). Como isso levava seus alunos a debocharem do pedido, Euclides constrangido trocou o pedido para a demonstração do teorema de Pitágoras.


No entanto, Transformações talvez seja difícil porque é um texto destinado exclusivamente para psicanalistas, confrontando identidades e diferenças que só podem integrar-se com a “evolução” da experiência pessoal de cada um. Este é um aviso frequentemente explícito por Bion. Assim, ter dificuldades no trajeto de leitura faz parte do livro. Aplique-se aqui, como sabedoria, as palavras do poeta Mario Quintana: Pedras no caminho? Guardo todas. Um dia construirei um castelo....



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O desafio certamente torna-se maior para o leitor iniciante_ sobretudo o analista em formação_ que precisa tomar o texto como tarefa de seminários. Mas seja qual for o nível de evolução do leitor ele se depara com inúmeras questões que tem o viés da complexidade, isto é, questões que surgem no fluir do pensamento de Bion por diversas disciplinas, como a filosofia, a arte, a lógica, a Física, a matemática, para com isto gerar questões para a psicanálise que exigem uma forma nova de pensar. Bion cria um novo espaço para pensar.


Talvez eu possa dizer nesse ponto que a teoria da complexidade é a chave para a leitura do texto. Antecipando, portanto, que teremos que enfrentar contradições sem a tentativa de resolvê-las, enfrentar paradoxos sem querer se livrar deles de forma simplista, procurar ampliar as incógnitas para com elas gerar novos planos, desconfiar dos efeitos apaziguadores da dialética. A proposta do pensar complexo aparece nitidamente na Teoria do Pensar (1962a), e tem em Transformações uma reverberação vigorosa. Mas antes do mais é necessário estabelecer de uma forma geral as alterações causadas pela Complexidade.



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A primeira característica das ideias da complexidade é a mudança de paradigma Ele altera a epistemologia, a ontologia, a metodologia, a lógica e, sobretudo, a prática. Não há no meu entender como estudar o texto sem destacar essas alterações que são introduzidas pelo que se denomina de sistemas abertos. Inclusive devem servir de guia para o que se segue.


Tais sistemas são configurados pelo universo dos objetos complexos, não-lineares, não-explicativos, em oposição aos objetos simples, lineares, que são explicativos e diagnósticos. Estes últimos, mesmo que se abram para acolher elementos novos, voltam logo a se fechar.


Os sistemas abertos têm sua primeira expressão no trabalho em que Bion descreve um modelo espectral de partes psicóticas e não-psicóticas da personalidade (1956). Logo em seguida, no trabalho “Sobre Arrogância” (1957), Bion ao fazer uma releitura do mito de Édipo sob o vértice da parte psicótica da personalidade, mostra que a questão metafísica central da psicanálise é a investigação da Verdade.


A verdade no centro, descentralizando os anteriores paradigmas da psicanálise, estabelece uma leitura pelo vértice de uma ética trágica (o elemento principal não está presente em cena e nunca pode ser conhecido), mas, sobretudo, entende a psicanálise como um sistema eternamente aberto. O Trágico no sentido mais profundo deve ser diferenciado da tragédia, que ao contrário da proposição trágica, estabelece alguma conclusão definitiva. A tragédia humana se encontra sempre nas conclusões tomadas como definitivas, nos contextos morais que substituem o pensar por onisciência e onipotência.


Todo modelo espectral implica em um Princípio ético-estético de Infinitude (Chuster, 2011, 2014, 2018). Portanto, guarda relações com a epistemologia dos conjuntos infinitos de Cantor [2], com os teoremas de Indecidibilidade de Kurt Gödell [3], e com o Princípio da Incerteza de Werner Heisenberg [4]. Na ciência temos diversos desdobramentos dessas ideias, tais como a teoria dos fractais [5], a teoria do Caos [6], e finalmente a Teoria da Complexidade de Edgar Morin [7].


Vou mencionar brevemente alguns sistemas abertos que consigo identificar no pensamento de Bion:


Ontologia — pré-concepção (base da Teoria do Pensar), “O” das transformações, mente embrionária. O inconsciente se origina nas pré-concepções.

Epistemologia sistemas abertos -> experiência emocional -> objeto psicanalítico -> campo (Grade) -> Grade avançada -> cesura

Metodologia trabalhar sem memória, sem desejo e sem necessidade de compreensão; capacidade negativa; ato de Fé, linguagem de êxito, simetrias.

Logica Onthos inacessível que se desdobra em Opus infinito: “O”. Lógica das Transformações e simetria. Holografia.

Prática Transformações, sem memória e sem desejo, Cesura, Simetria na Interpretação, Linguagem de Êxito, Futuro da Transferência, capacidade negativa.


Apesar de obviamente não nomeada por Bion, porquanto ainda não existente na ocasião, Bion intuiu uma teoria da complexidade para a psicanálise, e isso faz de Transformações o diferencial de sua posição social-histórica na psicanálise. Esse diferencial tem diversos significados que espero apontar na minha exposição.


Em primeiro lugar, em virtude das questões inusitadas que enfocam mais no processo de pensamento do que nos objetos, Bion produziu um texto que despertou no leitor o sentimento equivalente àquele que o analista conhece dentro do processo analítico como “resistência”. Nada de novo nessa reação a Bion. Todavia, não era só uma questão de lidar com as reações ao desconhecido e ao perigo, mas também de um enorme questionamento de todas as teorias psicanalíticas que são passadas pela peneira da indagação: verdadeiro ou falso? Saturadas ou necessárias? Nenhuma teoria conhecida deve escapar do questionamento.


Por exemplo, no conceito de resistência Bion aplica o Princípio de Indecidibilidade da origem pensando no fenômeno como algo que afeta a ambos participantes e o nomeará como inacessibilidade a “O”. A formulação leva em conta que em toda relação existe um ponto (ou fenômenos compartilhados) que não permite decidir a quem pertence. Esse ponto é “O”. Um ponto de partida para questionamentos e observações sobre o desconhecido que se movimenta. “ O” é inacessível e incognoscível e se movimenta inalterado como um sóliton: onda única que não sofre alteração com os obstáculos; uma turbulência contínua, incessante, inacessível, que está sempre à frente.



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Por outro lado, não estaremos equivocados se ponderarmos que o objetivo geral do texto é entender a questão da resistência/transferência de uma forma mais ampla e particular que podemos resumir pela seguinte frase do texto:


Considerando a experiência analítica à luz de uma teoria das transformações é possível ver os problemas do pensamento de uma maneira nova”.


Em segundo lugar, saliento que Bion não é um professor criando um texto didático e compreensivo: ele é um psicanalista tentando transmitir sua forma de pensar e sentir no processo analítico; um analista tentando ampliar o alcance de suas fronteiras clínicas.


Ninguém pode entender a grade ou transformações sem a experiência de seus usos como parte da prática psicanalítica” (pg.93)


Bion se dirige a psicanalistas que se disponham a criticá-lo. Todavia, para que essa crítica se exerça com real efetividade, necessitamos contornar a superestimação que Bion faz da capacidade de seu leitor nesta tarefa. Ele parece considerar que o leitor conhece arte, matemática, lógica, filosofia, epistemologia, física quântica e, literatura, em nível suficiente para entendê-lo e perceber a sua intuição vigorosa antecipando o futuro.


Além disso, no texto, Bion está expondo sua crítica à psicanálise clássica e simultaneamente sugerindo a partir dela pontos de desenvolvimento para sua obra. Penso que ele foi um analista que representou esses dois aspectos para a psicanálise introduzindo mudanças tanto nas teorias como no estilo de trabalhar. Eu penso que seu estilo pode ser descrito como uma bem-humorada reverência ao esforço passado da psicanálise em busca de Saber, e ao mesmo tempo, uma crítica aguda a esse conhecimento adquirido que se pretenda como um Saber no presente.


Essa aparente ambiguidade aparece nitidamente quando ele diz que seu objetivo é o desenvolvimento de um método crítico e não de teorias, mas ele não pode fazê-lo sem criar teorias, uma vez que o principal objeto de observação é a transferência – ou seja, a principal teoria psicanalítica. Se o leitor não puder lidar com esta ambiguidade_ típica da complexidade_ se encontrará envolvido rapidamente numa espécie de emaranhado conceitual árido.


Seu estilo nos ensinou não apenas um saudável desdém aos formalismos rigorosos, mas também uma genuína informalidade na forma de pensar e comunicar. É difícil descrever a profundidade do gênio capaz de trabalhar desta forma. Ele perturbou o universo psicanalítico despertando tanto curiosidade saudável quanto oposições hostis, e trouxe muitas questões que só puderam ser compreendidas após muitos anos de sua formulação.

Diante destas características, o texto necessita ser “quebrado” nos momentos de dificuldade de leitura, para distinguir qual dos três discursos que Bion está enfocando: método crítico, transferência, ou teoria psicanalítica. Essa forma de leitura não é muito diferente da que Bion sugere para o trabalho analítico: diante de um ponto obscuro para pensar não basta querer; é preciso mudar de vértice. O vértice pode mudar a cada instante, como num caleidoscópio_ aliás uma boa imagem para o texto e até para a obra de Bion em geral.


Por exemplo, quando ele traduz “O” pela poesia de Milton (Paradise Lost) como “ infinito vazio sem forma” e diz “não estou interpretando o que Milton diz, mas utilizando-o para representar “O” “_ isso é um método crítico. Logo em seguida ele diz: o processo de amarração [8] é uma parte do procedimento pelo qual alguma coisa é “ obtida do vazio infinito sem forma” (pg.178) aqui ele está falando de uma teoria psicanalítica, o vínculo K, como possibilidade pelo qual “O” é aquilo que veio a Ser. Mas quando ele fala do sentido de dentro e fora, objetos internos e externos, introjeção e projeção, continente e conteúdo, todos associados com K, ele está falando da transferência. As três possibilidades estão contidas sequencialmente na mesma frase.



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Em terceiro lugar, ao encadear os três processos distintos que estão no subtítulo do livro: change (mudança), learning (aprendizado) e growth (crescimento), Bion estabelece uma diferença importante de leitura com relação aos seus textos anteriores. Se nesses é possível perceber nitidamente um discurso que emerge da forma nova como concebeu as trocas entre as duas posições kleinianas PS⇔D, e as aplica nas trocas entre teoria e prática dentro dos textos, ou entre questões abstratas e concretas.

Transformações é uma leitura tridimensional do processo analítico. Ou seja, os vértices K, L, H nomeados em Aprender da Experiência (1962b) são o referencial de leitura, uma espécie de “chave” para o leitor não se perder nas sucessivas rupturas do discurso. Todavia é importante alternar nos vínculos as possibilidades mutáveis: L (aprendizado), K (crescimento), H (mudança).


Em outras palavras, não podemos buscar nos 12 capítulos do texto uma unidade e uma consistência sistemática, mas podemos tentar perceber o jogo de forças reciprocamente atuantes sob a superfície do discurso de três facetas. Além disso, é necessário tratar as filosofias implícitas da mesma forma: como complexidade dos campos de força. Essa forma ocorre no pensamento complexo através de uma imagem holográfica [9].



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De uma forma geral podemos considerar a imagem acima como passível de holografia da seguinte forma enunciada no texto por Bion:


O psicanalista tenta ajudar o paciente a transformar aquela parte de uma experiência emocional da qual está inconsciente em uma experiência emocional em que ele está consciente. Se faz isso ajuda o paciente a alcançar conhecimento privado. ”

Em seguida ele diz:


As transformações do analista empregam o vínculo da fala assim como as transformações do músico são musicais, e as do pintor, pictóricas. Embora o analista tenta transformar O de acordo com as regras e disciplina da comunicação verbal, esse não é necessariamente o caso do paciente. Ele pode, por exemplo, transformar “O” naquilo que parece ser uma comunicação verbal, mas é para o analista alguma coisa do âmbito de uma alucinação”. (pg.78)


O papel do analista envolve inevitavelmente o uso de ideias transitivas ou ideias em trânsito para lidar com experiências emocionais. O analisando, da mesma forma, está tentando formular uma experiência emocional através de pensamentos que transitam e se modificam a cada momento e a cada sessão. Embora esse movimento seja chamado de associações-livres, elas necessariamente não estão livres de alguma escolha que transcende a consciência do sujeito: o inconsciente. Portanto, a ideia de um mundo em transformações baseadas em escolhas inconscientes está obviamente sempre presente. Este fato em si deveria ser suficiente para justificar a existência de uma teoria das transformações em psicanálise. Entretanto, isso não ocorreu antes de Bion, assim como não existia antes de Bion uma teoria propriamente psicanalítica do Pensar.


Um dos objetivos deste curso é tentar alcançar algum entendimento deste processo de desenvolvimento que está presente ao longo dos 12 capítulos do livro de Bion.


A Teoria do Pensar


A teoria propõe que a psicanálise seja uma resposta prática para questões filosóficas (questões da vida_ que os filósofos sabem formular bem_ mas não sabem o que fazer com elas). Mas existe um condicional para esta resposta: o parâmetro necessita respeitar a mesma relação que existe entre a matemática pura e a matemática aplicada (ou seja, a psicanálise precisa possuir um campo que defina suas limitações e alcances, e que seja regido por princípios epistemológicos que o afaste de hábitos vazios e crenças).


O campo sempre em expansão é o objeto psicanalítico. Fica mais ilustrativo se pudermos visualiza-lo como um objeto complexo holográfico (ψ (ξ) ±Y µ) aplicado para integrar três áreas: mitos, sentidos e paixões, que se colocam para a observação do analista. Todavia, como em toda atividade de observação que se propõe científica, o analista precisa de um instrumento que não permita que se torne apenas uma pessoa como qualquer outra na observação dos fenômenos mentais. Como todo instrumento de ciência ele precisa ser construído com seguindo o parâmetro da matemática, tal como Bion ressaltou na teoria do Pensar. A tarefa seria entender o parâmetro matemático básico que é o conceito matemático de funções, para ressaltar de que forma se tornou a base de construção dos instrumentos que vão observar o campo.


Torna-se necessário também entender uma das dificuldades implícitas, pois não sendo essa base um sistema dedutivo científico que permite tudo construir, recorre-se ao uso das funções como se fosse mais uma espécie de poesia matemática. Ou seja, o instrumento precisa ser criado a cada sessão e calibrado a cada vez que for utilizado.


Diz Bion: “ Quando eu pensava que apreendera seu significado era muitas vezes em virtude de uma experiência estética mais do que uma experiência científica”. (pg.69)


Note-se que Bion inicialmente aplica a teoria das funções na relação mãe-bebê, visualizando aí o desdobramento de uma relação continente/conteúdo com a qual desenvolve a teoria da reverie (a função materna). Posteriormente amplia seu alcance com a função alfa que serve para qualquer outro contexto humano onde se observa a relação continente/conteúdo. Ambas são aplicações da teoria das funções na compreensão da função do pensar. A fórmula escrita da pré-concepção é igualmente uma função ψ (ξ). f(x)


O objeto psicanalítico pode ser entendido um espaço de Hilbert, que por sua vez possibilita a análise funcional do campo (elementos de psicanálise), que vai inevitavelmente necessitar de uma teoria de Transformações que, por sua vez, não pode prescindir do conceito de funções. Existe uma circularidade nessa investigação de Bion; sistema aberto-> espaço de Hilbert-> funções-> análise funcional-> transformações -> sistema aberto


O conceito de Funções


O conceito matemático de função surgiu no século XVII em conexão com o desenvolvimento do Cálculo, introduzido por Leibniz ao descrever a declividade de uma curva em um ponto específico.


Matemáticos do século XVII tratavam por funções aquelas definidas por expressões analíticas. Foi durante os desenvolvimentos rigorosos da Análise Matemática por Weierstrass, Russel, e outros, que ocorreu a reformulação da Geometria em termos da análise e a invenção da Teoria dos Conjuntos por Cantor, e assim se chegou ao conceito moderno e geral de uma função como um mapeamento unívoco de um conjunto em outro.


O conceito de função é um dos mais importantes em toda a matemática. O conceito básico é o seguinte: toda vez que temos dois conjuntos e algum tipo de associação entre eles que permite corresponder a todo elemento do primeiro conjunto um único elemento do segundo, ocorre uma função.


O uso de funções pode ser encontrado nos mais diversos campos. Por exemplo, na tabela de preços de uma loja, a cada produto corresponde um determinado preço. Outro exemplo seria o preço a ser pago numa conta de luz, que depende da quantidade de energia consumida.


Observe, por exemplo, o diagrama das relações abaixo:



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A relação acima não é uma função, pois existe o elemento 1 no conjunto A, que não está associado a nenhum elemento do conjunto B. Vamos ver outro caso:



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A relação acima também não é uma função, pois existe o elemento 4 no conjunto A, que está associado a mais de um elemento do conjunto B. Agora preste atenção no próximo exemplo:



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A relação acima é uma função, pois todo elemento do conjunto A está associado a somente um elemento do conjunto B. Assim quando Bion diz:


Uma interpretação é uma transformação; para expor invariantes, uma experiência sentida e descrita de uma maneira é descrita de outra”. (pg.16)


Ele está se referindo a uma função e a uma transposição de conjuntos.


De um modo geral, dados dois conjuntos A e B, e uma relação entre eles, dizemos que essa relação é uma função de A em B se e somente se, para todo x A existe um único y B de modo que x se relacione com y.



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Gráfico de uma função


O conceito de função é uma generalização da noção comum de fórmula matemática. As funções descrevem relações matemáticas especiais entre dois elementos. Intuitivamente, uma função é uma maneira de associar a cada valor do argumento (às vezes denominado variável independente) um único valor da função (também conhecido como variável dependente). Isto pode ser feito através de uma equação, um relacionamento gráfico, diagramas representando os dois conjuntos, uma regra de associação, uma tabela de correspondência, etc. Muitas vezes, é útil associar cada par de elementos relacionados pela função com um ponto em um espaço adequado (por exemplo, no espaço {\textstyle \mathbb {R} ^{2},}geometricamente representado no plano cartesiano). Neste caso, a exigência de unicidade da imagem (valor da função) implica um único ponto para cada entrada (valor do argumento).


Assim como a noção intuitiva de funções não se limita a cálculos usando números individuais, a noção matemática de funções não se limita a cálculos e nem mesmo a situações que envolvam números. De forma geral, uma função liga um domínio (conjunto de valores de entrada) com um segundo conjunto, o contradomínio ou co-domínio (conjunto de valores de saída), de tal forma que a cada elemento do domínio está associado exatamente um elemento do contradomínio. O conjunto dos elementos do contradomínio para os quais existe pelo menos um no domínio tal que (i.e., se relaciona com), é o conjunto imagem ou chamado simplesmente de imagem da função como descreve o gráfico acima e a imagem abaixo.



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As noções de variáveis (x) e invariantes (f) são sempre provenientes noção de função, e podem ser representadas como f (x). Se quisermos ampliar psicanaliticamente podemos falar da pré-concepção como uma função sendo psiᵠ o elemento invariante e ksiᵋ o elemento variável.


A função do analista se desdobra em atos que parecem relacionados a dar uma interpretação, e para tal, precisa ser capaz de verbalizar uma integração da formulação de seus sentidos, com suas intuições/conceitos e suas emoções e reações primitivas ao que está sendo dito pelo paciente.


Como foi dito o objeto psicanalítico é a aplicação prática em três áreas integradas:



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Quando a eficácia da interpretação idealmente consegue ser semelhante à um ato físico, Bion a nomeia de Language of Achievement_ que traduzo como linguagem psicanaliticamente bem-sucedida.


Para que essa linguagem seja produzida temos de lidar com as transformações do analisando que, não obstante serem bem extensas, aumentam em dificuldade de compreensão pelo pouco que ele pode fazer ao universo restrito das associações de ideias.


O analista também impõe limitações ao analisando através das mínimas condições necessárias de trabalho analítico. Não podemos trabalhar se o analisando estiver livre para recorrer a violência física. Mas existem violências sutis das quais não podemos escapar, sobretudo, aquelas que se valem da voz. Alguns analisandos falam sem parar, outros podem falar de forma inaudível, outros não falam com sequência e parecem que estão gaguejando. Através dessas situações a sessão pode ficar bem penosa para o analista. Uma dispersão pode ocorrer onde deveria ocorrer uma integração que visualize o objeto psicanalítico.


Podemos apelar ao mito de Édipo para tentar uma compreensão de situações difíceis causadas pelo instrumento da voz, pois o mito ilustra momentos em seus passos na busca da verdade, momentos de gritaria e silenciamento. O Oráculo grita, Tirésias pede silêncio, na encruzilhada Édipo e Laio gritam um com o outro, a Esfinge tenta silenciar, Édipo grita de dor por seu destino trágico.


Em que ponto do mito o analisando se encontra? Como integrar o som da voz, com o mito e o sofrimento através de uma transformação em K que seja suficientemente ativa para ser psicanalítica?


Outra situação que pode ser penosa para analista advém do analisando que usa abusivamente do olhar e por isso não quer se deitar no divã. O que poderia ser tão perigoso ao deitar-se num divã com alguém, supostamente preparado para escutar o fluxo de ideias e associações?


Bion sugere que o deitar no divã pode submeter um tipo de analisando a pressões físicas que

estão além da sua capacidade de tolerá-las, e muito menos de verbalizar ou entender. Em outras palavras um dos principais indicadores de contato com um objeto complexo na psicanálise é o uso do divã. Pode ocorrer contato com estados mentais muito primitivos.


O paciente com predomínio da parte psicótica evita a todo custo o divã com a lógica aparentemente simplista da “necessidade de olhar para quem está falando”. Mas é exatamente aqui que a complexidade do problema se revela. Se considerarmos que o olhar amoroso materno precede a palavra, e se consideramos que o olhar amoroso integra (reverie) as demais necessidades físicas e sensoriais do bebê, o paciente que não consegue abrir mão do olhar social tenta esconder ou evitar exatamente o oposto: a sofrida falta de olhar intuitivo e emocional.


Existe um mundo que antecede o mundo em que vivemos e que é totalmente submetido a pressões de ordem física: o mundo intrauterino. Carregamos sem saber este mundo ao longo de nossas vidas através de uma mente pré-natal a espera de uma oportunidade para nascer. Todavia, se as tentativas falham aparecem todo tipo de problemas, incluindo os sintomas corporais desagradáveis que recebem designações tais como as de sintomas psicossomáticos. Esses problemas podemos abordar através de uma teoria das transformações.


O diálogo filosófico em Transformações


Em Transformações as questões filosóficas que geraram a teoria do pensar apresentam algo mais do que a manutenção do sistema de idealismo transcendental kantiano, cuja presença detecta-se em muitos pontos da obra de Bion. Veremos no texto o início de uma guinada filosófica para Nietzsche.


A filosofia de Nietzsche começa a gerar momentos objetivo-ontológicos e subjetivo-idealistas que se opõem no conteúdo ao Kantismo e cria passagens bem consistentes que adotam o doutrinal de ciência em diálogo com a estética da arte. Nesse meio de questões Bion trabalha também com as teorias de forma de Platão e a questão da conjunção constante de Hume.


Os fragmentos filosóficos provenientes de Nietzsche são essenciais e traduzem também uma ruptura definitiva com o sistema de pensamento kleiniano tradicional. Tal qual o Zaratustra de Nietzsche, Bion sai do isolamento, desce a montanha inglesa, e ruma aos USA para o diálogo aberto e ousado com seus contemporâneos. Lá ele irá falar dos místicos e gênios que alegam entrar em contato com a verdade sendo capazes de pensar um pensamento sem pensador.


Transformações permite acompanhar o prosseguimento da série de proposições críticas presentes em todos os seus textos anteriores. Entretanto, essas proposições constituem um projeto denso que_ diga-se logo_ não foi inteiramente bem-sucedido em muitos pontos quanto à clareza de suas proposições gerais, mas foi extremamente bem-sucedido nos aspectos relacionados com a observação clínica. Esta terá a brilhante continuação na descrição da técnica em Sobre memória e Desejo (1967) e da clínica em Atenção e Interpretação (1970).


O principal referencial crítico é o teorema de Indecidibilidade (Kurt Gödel) base do princípio da Incerteza (Heisenberg) se expressa como conceito central do texto que é “O”. Podemos defini-lo da seguinte forma: existe um ponto em toda relação que não podemos decidir a quem pertence. A inexatidão da matemática parece abrir caminho para uma compreensão funcional: um Onthos que engloba tudo que não sabemos do que se trata. Expõe assim a função do não saber que precisa de um Opus para se desdobrar. O movimento é incessante como foi mostrado no gráfico da página 5. (Vide imagem do sóliton).

Entretanto, como já foi dito, para dar conta desse movimento o mundo da estética terá que ser acionado, e assim Bion traduz esse Onthos por uma citação proveniente da poesia de John Milton em Paradise Lost: “o vazio infinito sem forma” que deve evoluir em toda sessão.


O campo analítico como um vínculo indissociável dos objetos que liga (função) deve ser investigado até o ponto em que as transformações possibilitem alcançar uma interpretação. Aqui temos Onthos e Opus, o conceito literário que encontramos em James Joyce no Finnegan’s Wake [10] como “ work in progress”. Portanto, “O” é Onthos e Opus. Mas não deixa de ser também o que Aristóteles propusera como Energeia e Dynamis: força e movimento indissociáveis. A ideia central é a complexidade da linguagem como circularidade e simultaneidade de ambos os termos.


Transformações e Transposição crítica


Bion tomando como referencial o pensamento de W. Heisenberg em Physics and Phylosophy [11] desenvolve o Princípio de Incerteza nas observações analíticas, e introduz os esquemas espaciais da geometria projetiva algébrica como sistema de decidibilidade para a validade das teorias psicanalíticas que podem envolver uma forma saturada do pensar. Essa é uma aplicação do espaço de Hilbert. A questão principal é que nenhuma ciência consegue ter clareza sobre sua própria essência. Não se pode investigar uma ciência como se fosse objeto dessa ciência, ou seja, usando o mesmo método.


Na matemática, um espaço de Hilbert [12] é uma generalização do espaço euclidiano que não precisa estar restrita a um número finito de dimensões.


É um espaço vetorial dotado de produto interno, ou seja, com noções de distância e ângulos. Esse espaço obedece uma relação de completude, que garante que os limites existem quando esperados, o que permite e facilita diversas definições da Análise. Os espaços de Hilbert permitem que, de certa maneira, noções intuitivas sejam aplicadas em espaços funcionais. Por exemplo, com eles podemos generalizar os conceitos de séries de Fourier em termos de polinômios ortogonais. Os espaços de Hilbert são de importância crucial para a Mecânica Quântica.


Espaços de Hilbert foram criados por David Hilbert, que os estudou no contexto de equações integrais. Os elementos de espaço de Hilbert abstrato são chamados vetores. Em aplicações, eles são tipicamente sequências de números complexos ou funções. Em Mecânica Quântica, por exemplo, um sistema físico é descrito por um espaço de Hilbert complexo que contém os vetores de estado, que contém todas as informações do sistema e complexidades multifocais.


Parece que a intenção de Bion é recuperar a intuição que submergiu nos conceitos saturados pelo uso, por isso decide colocá-los num espaço de Hilbert e passa a falar de seio como ponto, movimento do seio à boca como reta, identificação projetiva como hipérbole, e assim representa um esquema da mente humana como um espaço novo, não-linear, aberto a muitos ângulos e possibilidades.


Os teoremas de Indecidibilidade de Gödel [13] na matemática, resumidamente expressam a impossibilidade de se decidir sobre a observação de um sistema estando dentro dele. O ideal seria sair deste sistema para observá-lo, experimentando no novo sistema as hipóteses do primeiro. Note-se aqui a coexistência de um duplo sistema de observação e a questão da decisão ou escolha diante de possibilidades que se abrem. O espeço de Hilbert na matemática sustenta essa possibilidade de abertura para pensar num outro domínio.


É conveniente postular a existência de uma mente representada inteiramente por pontos, posições de objetos, lugares onde alguma coisa costumava estar, ou estaria em alguma data futura. Objetos percebidos no espaço contribuem para a transformação desses elementos (análogos a (ξ) ou não-coisas específicas.


O referencial da teoria das funções como um dos parâmetros da Teoria do Pensar, e que também compõe a forma da Grade, levaram Bion a escolher a geometria projetiva algébrica (por transmitir as representações de um looping auto-poiético fornecido pelo espaço de Hilbert: planos sucedem planos com ampliação das incógnitas e como sistema de decidibilidade para as teorias analíticas. Além disso no aumento das incógnitas aumenta-se as possibilidades de solução


O espaço de Hilbert implica na escolha dentro da teoria analítica de um operador para os vértices de tempo e espaço. Bion soluciona essa possível dificuldade quando se utiliza da metáfora kleiniana “distância em que um objeto é projetado pela intensidade da identificação projetiva”. O conceito verificador mostra a transposição de sistemas com o aumento do ângulo da hipérbole na medida em que a projeção vai aumentando de intensidade: transformação em K⟹transformação em moção rígida⟹transformação projetiva⟹transformação em alucinose.



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As transformações em Alucinose podem ser descritas como transformações que ocorrem no limite da perda de capacidade do pensamento humano. Note-se sempre que o movimento que caracteriza as transformações é de criação e destruição de formas, deste modo, no mais além das transformações em Alucinose entramos no campo das transformações psicóticas com destruição acentuada das formas sem simultânea criação significativa.


O grau de distorção espacial do pensamento inerente à intensidade da identificação projetiva, que envolve também o tempo maior de duração, se sustenta nas lógicas de resultado moral. Esta lógica está sempre presente nas justificativas da Maldade e podemos nomeá-la de razão cínica. Uma forma sutil é encontrada nos pacientes que buscam um antídoto para seus problemas e não a solução.


A lógica moral é expressão e veículo da crueldade do superego e da rivalidade na escala de valores, sendo que ambas as propriedades desencadeiam o processo da mentira como seu principal operador de ambas características. Tal lógica_ apesar de estar correta do ponto de vista formal_ baseia-se em incoerências, generalizações, falta de sujeito nas orações, e premissas falsas grandiosas. A interpretação dessas características nos permitem interromper o ciclo das transformações em Alucinose e entrar no ciclo das transformações projetivas. Para tal precisamos destacar na interpretação o não dito que está presente nas generalizações, incoerências e nas premissas falsas ocultas. Onde está o sujeito é uma boa questão para se levantar quando a indagação fica bloqueada pelas transformações em alucinose.


Ou seja, se o não dito pode ser expandido destacando os significados de segredo, conluio, e a instabilidade produzida por ambos, então encontramos um ponto pelo qual podemos mudar para o ciclo das transformações projetivas. Mas sem expandir esse dito sobre as premissas falsas, o ciclo de transformações projetivas será análogo a infiltrações de água numa parede. Elas prosseguem num meio inadequado até um ponto de vazamento que não dá nenhuma pista de onde é o seu início. A imagem de um ciclo oscilatório é bem aplicada aqui. Duas ocorrências podem servir como exemplo de transformações projetivas; as chamadas somatizações e o aumento de idealização em contraposição à realização.


A expansão da comunicação neste nível da interação humana em direção a explicações históricas da vida do sujeito permite entrar no ciclo das transformações em moção rígida.


Nesse ciclo, uma história passada pode ser agregada à compreensão do que ocorre no presente. A ilusão de uma situação passada repetindo-se no presente, pode ser traduzida pelo que conhecemos como interpretação freudiana do campo analítico, e que pode originar uma transformação em K, isto é, um conhecimento sobre si mesmo.


O passo seguinte está na condicionalidade deste conhecimento, ou seja, se este conhecimento pode tornar-se uma sabedoria sobre si mesmo, algo da ordem exclusiva do Ser, ou aquilo Bion nomeia de transformação em O.


Note-se que nesse processo o trabalho do analista pode ir até o ponto em que se direciona KàO e que caracteriza a transformação analítica.


A transformação em O_ que podemos nomear como a transformação do sujeito nele mesmo_ só ocorre no âmbito do tempo interno. Não há distorção espacial, pois há apenas “um cair em si mesmo”, um “tornar-se aquilo que se é”. Note-se nessa última frase a influência de Nietzsche.


A transformação em O se distingue das demais por não ser mais uma hipérbole e ter uma negatividade única na projeção temporal. Ela é a transformação em que o significado adquirido (o saber acerca de si mesmo) realiza a existência da “verdade” do sujeito ao integrá-la com sua história. O sujeito torna-se significado ao invés de apenas saber sobre si mesmo. A temporalidade é a do sujeito que se aproxima de ser aquilo que deveria ter sempre sido. Entretanto, como a própria forma de projeção em “O” indica, o tornar-se significado pressupõe etapas que seguem ciclos de negatividade que necessariamente não ocorrem na sessão, e podem ocorrer até mesmo anos depois da análise.


A transformação em O é uma consequência final dos ciclos de negatividade que fazem do significado a característica do sujeito, mas também seu limite. É específico do significado que nesse ponto nada tenha valor senão pela diferença pura e do ponto de vista de um confronto com o não-Eu. Portanto, o limite não é o que separa um elemento dotado de consistência própria de outro elemento, igualmente consistente em si, mas é o princípio constitutivo dos próprios elementos.


A forma de negatividade na transformação em O quando ela aparece é a “violência” de uma mudança irreversível, ou seja, uma mudança catastrófica. Ela tem expressões que podem ser descritas em estágios pré e pós catastróficos.


O conceito de mudança catastrófica [14] aparece uma única vez no início de Transformações. Todavia, no ano seguinte foi objeto de um seminário (1966) com essa temática que envolve, sobretudo, a relação continente/conteúdo e seu desdobramento no crescimento e suas oposições.


As percepções de campo


Nas primeiras linhas do texto Bion aborda as relações entre transformações e crescimento escolhendo_ por uma série de razões_ o modelo do pintor (Monet). Note-se que se trata de um pintor impressionista, cuja escola remete à ciência como pano de fundo da observação do pintor. Os impressionistas foram informados que é o olho que mistura a cor, portanto pintavam de uma forma que visava esse efeito. Olhado de perto o quadro é um borrão de traços de cores, mas existe uma aferição até se alcançar o efeito de ponto ótimo de observação. Nesse ponto a noção de forma que o pintor tentou passar é bem perceptível e tem qualidade emocional.


Na escolha do estilo impressionista como contraponto estético está também implícita a tentativa de transmitir a noção de que o desenvolvimento mental é o processo pelo qual uma “mente embrionária” (potencialmente criativa) se desdobra, e se estende até um estado subjetivo de “maturidade” que nunca se encerra. Ou seja, o desenvolvimento mental é uma sucessão de transformações que remetem a um potencial a priori que em sua realização tem um acabamento que gera um ato de transposição social (Bion chama isso de public-ação).


Em outras palavras, trata-se de acompanhar a união de algo indefinido (Energeia) com algo que vai ser definido apenas no desdobramento (Dynamis), ou de observar o significado da transferência, como o “transformar” de uma matéria rica em determinações não explicitadas em uma forma que ela vai assumir – e, essa forma segue de acordo com uma norma implícita que é descrita pelo termo matemático que é a parte invariante de uma função.


O uso do referencial matemático das funções permite indagar se devemos incluir a psicanálise no grupo das transformações e, o método crítico da abordagem psicanalítica inclui como parâmetro comparações com a arte e a matemática pura, e como ocorre em ambas. Podemos dizer no geral que na percepção de um fato e sua interpretação admitimos a óbvia ocorrência de muitas transformações. Modelo do pintor e do escultor.


De um modo geral, os aspectos que permitem o reconhecimento do fato observado pela interpretação com algo anterior à transformação realizada são as invariantes.


No domínio da experiência artística esse espectro de eventos é fácil de ser reconhecido, pois está colocado no domínio sensorial: invariantes sob criação artística são imediatamente reconhecíveis como no caso da pintura: escola, estilo pessoal, método, etc.


Em analogia com o artista, o analista procura captar invariantes de seus analisandos expondo-as através de uma interpretação. Todavia, invariantes sob psicanálise não são tão facilmente reconhecíveis como na arte ou na matemática. A analogia com a arte é válida para a teoria, mas na prática torna-se ambígua por uma razão fundamental: as invariantes humanas derivam de fatos estritamente relacionados a intervalos de espaço-tempo, antes de emergirem nas interpretações. Este aspecto influi enormemente no fato observado. Isto é, sempre existe uma cisão em virtude do espaço-tempo: um antes e um depois são inerentes a qualquer fato do psiquismo humano que foi interpretado. Essa cisão originária faz do tempo a questão central de Transformações embora Bion não a tenha explicitado com clareza ficando mais visível o parâmetro “espaço” mental.


Se quisermos um exemplo de espaço mental complexo temos na reverie uma ideia altamente abrangente de espaço da função materna na origem do psiquismo humano (análise funcional). O bebê busca primariamente, não o seio, mas a mente da mãe; este encontro é que possibilita a amamentação_ não mais podendo ser vista como um ato puramente físico_ mas como um ato primordialmente mental, uma experiência emocional, que se desenvolve para ambos, mãe-bebê.

Note-se neste processo a existência sempre presente da relação triangular: a mente do bebê, a mente da mãe, o seio. Em outras palavras, em Bion ocorre uma radicalização das ideias sobre o complexo de Édipo originadas em Freud. Em Bion, a configuração edípica coincide com o humano_ a mente humana é edípica_ e por isso desde sempre tridimensional. Em outras palavras, somos seres condenados geneticamente a uma existência mental.


O significado do elemento inato na teoria de Bion (invariante da função) passa a ser apenas a inescapável busca pela mente do outro, seja a da mãe, casal, família, grupo social, mas sempre a busca por uma mente capaz de acolher comunicações das necessidades e incompletudes. Mas o elemento inato nada significa sem a experiência emocional.


Tempo, transformações, mente primitiva e transferência


Eu sei que por algum tempo vou me manter oscilante entre a razão e o desejo. Algumas decisões são tomadas com o coração inquieto e o pensamento tomado por muitas coisas que aconteceram e acontecem, tudo misturado. Sei também que o tempo vai ser meu amigo para essas coisas da vida. Com coragem eu sigo, nessa velocidade que não temo, nem mesmo de ousar ser feliz”.

Fernando Pessoa


A interpretação analítica faz uma cisão artificial que traz as qualidades básicas do objeto da psicanálise: inconsciente e consciente. Sendo ambos elementos da psicanálise, admitimos como lógico que devemos enfrentar o fato de que, num sentido profundo, o tempo do inconsciente e do consciente não são exatamente o “mesmo” – se bem que um age sobre o outro. Este fato simétrico exige uma especulação separada para assuntos como, por exemplo, o tempo da sessão analítica e o tempo da cura. Desta forma, podemos definir o tempo em psicanálise [15] através da dupla articulação entre a ficção e a história, e, mais profundamente entre verdade e história, pois é isto que leva a nossa experiência temporal até a linguagem. A ficção oriunda do tempo interno também diz a verdade, mas de uma forma diferente da história do tempo externo. Em resumo, há uma complementaridade entre ficção e história vis-à-vis a verdade da história que é necessária para se pensar o tempo humano por uma especial constatação: o tempo sempre nos divide; a verdadeira cisão que mais nos atinge é a cisão temporal. Essa é uma das razões pelas quais necessitamos dos mitos. O mito propõe uma história sem tempo para começar e acabar, como no umbigo do sonho por onde este mergulha no desconhecido.


A temporalidade é certamente outro ponto original na teoria das transformações. Cada tipo de transformação transmite a vivência de uma temporalidade distinta. Esta vivência tem relação direta com o tipo de ritmo e, também com o tipo de imagem que é captada mais profundamente no inconsciente. Neste ponto existe uma alusão direta à comunicação de inconsciente para inconsciente, descrita por Freud, mas não explicada por ele no texto onde faz a afirmação. Em Bion encontramos uma explicação não saturada para a comunicação de inconsciente para inconsciente. A premissa é que as pessoas se comunicam querendo ou não, pois o veículo básico de transporte da comunicação é a identificação projetiva. Ela não se detém com nada, somente no objeto a qual se destina. O que se faz com essa comunicação é outra questão. Neste fazer se insere a patologia.


Os tipos distintos de vivência temporal podem ser ligados a imagens específicas, que podem ser descritas pela mente representada por pontos, linhas, retas, círculos, hipérboles: a questão se amplia.


Por exemplo, na transformação em K a vivência é de um tempo referencial, um antes e depois da informação, este tempo se conecta com a imagem de uma reta_ ou um ponto que se move: essa seria a sensação captada de uma vivência sensorial no aspecto mais primitivo da mente.


Na transformação em moção rígida, a vivência é de um tempo circular: algo parece retornar sempre e conecta-se com a imagem de um círculo.


Na transformação projetiva a vivência é de algo que parece desaparecer e reaparecer como numa ondulação de uma linha sinusoidal: trata-se de um tempo oscilatório.


Na transformação em Alucinose a vivência é de um tempo misturado, passado parece ser presente ou parece ser futuro, e em todos sentidos gera uma vivência confusional: a conexão é com uma imagem de linhas se dispersando, tal como no desenho de um rabisco.


Em outras palavras, o fator decisivo no deciframento de imagens é o seu desdobrar em planos. O significado simbólico da imagem encontra-se na superfície mais acessível dos planos, e para aprofundar o significado é preciso fazer o “scanning” da imagem, o que é feito pela função-alfa. Ela estabelece o vínculo entre o emissor e o receptor gerando um espaço de símbolos conotativos. Note-se que cada tipo de transformação corresponde a uma forma de “scanning” da realidade comunicada. Por exemplo, na transformação em K as imagens estabelecem relações causais entre eventos. Compõe-se de uma regra de pontos (.) no espaço, sendo o ponto (.) uma referência. Por exemplo, uma informação: o horário da análise na segunda-feira é às 14hs.



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Na transformação em alucinose, o indivíduo ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a viver em função das imagens. Não mais decifra as cenas da imagem, mas o próprio mundo vai sendo vivido como um conjunto de cenas sem característica de organização temporal. A imaginação aqui está mais próxima da alucinação, mas diferenciando dela, Bion a denomina de alucinose. A imagem se confunde com a verdade e o indivíduo passa a ser incapaz de decifrar imagens, de reconstituir as dimensões abstraídas [16]. A imagem carrega um senso moral.


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Podemos colocar o que foi exposto no seguinte esquema gráfico:



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Transformações


A imagem concreta percebida mais profundamente sofre processos de transformação nos planos sucedentes e os planos interagem entre si dinamicamente até alcançar um tipo de comunicação, correspondente ao tipo de transformação que a imaginação do sujeito foi capaz de processar.

Em suma, o tempo pertence a todo sujeito humano. Não se trata aqui de uma dedução nem de uma explicação. Trata-se de um fato que demanda elucidação, um mistério cujo vigor se desdobra como desenvolvimento psíquico.


Bion se propõe a desenvolver seu vértice sobre essa questão fundamental. Na prática psicanalítica a transferência é um processo que traduz a ocorrência de transformações e, para acompanhá-las é preciso considerar sempre o hiato entre uma realidade a qual não temos acesso_ que é incognoscível e inefável _ e uma realização que é o Self. Esse hiato é também representado por Bion pelo hiato entre “conhecendo os fenômenos” e “sendo realidade” ou “conhecendo sobre psicanálise” e “psicanálise”, ou ainda “conhecendo sobre si mesmo” e “sendo esse conhecimento de si mesmo”. De qualquer forma, isto coloca no texto o seguinte movimento: se não podemos ter acesso a “O” através de um saber, se a origem do fenômeno psíquico está marcada pela Indecidibilidade, tudo que podemos fazer é imaginar como “O” seria se tivéssemos acesso a ele. Em outras palavras, um dos fios condutores do texto de Bion é a questão da imaginação como princípio de trabalho psicanalítico referido a princípios ético-estéticos.


Em Transformações podemos dizer que Bion organiza uma história psicanalítica da imaginação humana, ou melhor, ele refaz _ por meio da psicanálise_ os movimentos de descoberta da imaginação humana que vem desde a frase de Aristóteles: “a alma jamais pensa sem fantasia” [17]. Em outras palavras, se existe na psicanálise a busca de uma verdade, só podemos realiza-la considerando que a verdade está por vir a ser, que algo está por ser criado, o que significa, de início e antes de tudo, deseja-la, imaginá-la. O grau de distorção presente na imaginação irá definir os tipos de transformações descritos por Bion: tanto maior a distorção quanto maior o grau de identificação projetiva.


Muito provavelmente encontramos na própria imaginação de Bion uma inspiração no conceito kantiano de imaginação produtora. O conceito permite trabalhar com elementos que podem conter uma incompatibilidade entre eles _ o que é uma proposição também do pensamento complexo. Deste modo, o primeiro movimento de Transformações é a tentativa de fazer com que a psicanálise, a arte e, a matemática, trabalhem juntos usando um elemento comum que são as invariantes. As três atividades possuem processos de transformação nos quais as invariantes permitem que a imaginação não perca sua lógica. A inclusão traz possibilidades e limitações: as interpretações da psicanálise fazem parte do grupo das transformações?


Uma interpretação analítica usa elementos que unem o “antes” de uma mudança com o “depois” ou vice-versa. O “aprendizado” que ocorre neste processo _ visando a apreensão do inconsciente _ gera desenvolvimentos que obtém um critério por intermédio das invariantes. Porém, a mudança do aprendizado ao crescimento no processo analítico, que é condição sine qua non para a compreensão do texto, não tem positividade ou negatividade, ela é apenas uma expressão do ser em movimento.


O exemplo do quadro de Monet, no início do texto, retratando um campo de papoulas, expõe a questão das invariantes sob criação artística; o objetivo é indagar se existem invariantes sob criação psicanalítica. Na arte, obviamente, fica muito mais fácil definir o processo no qual emergem, mas no caso do processo analítico, quais são os pincéis, as tintas, a tela, o estilo, a escola?



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O quadro de Monet como modelo de observação tem um aspecto essencial no modelo que é o olhar. O pintor olhando a paisagem capta invariantes e as coloca na tela com sua interpretação. Entre a visão do pintor e a tela ocorreram uma série de variáveis que constituem as transformações. Do mesmo modo o observador tentando entender a visão do pintor capta invariantes, mas atribui a elas suas variáveis nas quais predomina os fatores emocionais.


Bion enfatiza seguidamente este aspecto: o processo analítico não ocorre no plano da razão. Nada significa simplesmente tornar consciente o inconsciente, pois embora o processo analítico define-se e tem seu destino causado pelas consequências deste ato de interferência, a análise se dá no plano da emoção, despertado por um modelo não quantificável de interpretação que estabelece a transformação analiticamente observável.


Bion diz: “como as transformações do pintor que variam de acordo com o entendimento que sua pintura pretende transmitir, a transformação do analista varia com o entendimento que ele pretende transmitir. As transformações kleinianas, associadas com certas teorias kleinianas, tem invariantes diferentes das invariantes numa transformação freudiana…uma particularização mais ampla é alcançada no fato da transformação de um analista kleiniano diferir da de outro”.


São diversas as consequências da interferência do analista no material do analisando e podemos coincidi-las com as transformações que Bion descreve no texto.


Para demonstrar sua formulação ele recorre a um fragmento clínico. Trata-se de um indivíduo com predominância de mecanismos psicóticos e de comportamento extravagante [18], que opera nos “limites” da fronteira loucura/sanidade. O processo de análise deste paciente parecia a Bion muito “arrastado” e, para os observadores havia muita pouca evidência de modificação de seu comportamento. Ocorre então uma mudança: amigos e parentes que sempre negaram que algo andava mal, não conseguem mais ignorar a doença. O indivíduo age estranhamente: gasta horas sentado taciturnamente, parecendo ouvir vozes e ver coisas. No consultório fica difícil definir este problema: ele está alucinando ou abusando da imaginação? Na análise torna-se hostil e confuso. Há súbita deterioração [19]. A consternação dos parentes fica evidente através de cartas e outras comunicações, incluindo até o médico da família. Há muitas razões para o analista ficar alarmado e, caso não fique, corre o risco de acontecer algo que o levará a ser acusado de negligência médica.


Os elementos descritos ilustram bem a impressão frequente de que o processo analítico fez emergir algo que, ao invés de melhorar o sujeito, o fez piorar; e este algo é o objeto da psicanálise. O aspecto imaginativo do texto é a indagação que Bion faz desse processo ao observar no paciente determinados fenômenos que não parecem possíveis de serem definidos como aspectos de um inconsciente recalcado que retorna. O estado mental do paciente mencionado está muito mais próximo de ser definido como uma consciência em que os fatos não estão ligados por relações de tempo, o espaço parece ser único, e a disposição dos objetos puramente sequencial. Trata-se de uma “consciência” incapacitada para usar suas percepções, pois lhe falta uma função primordial – que não é nada mais nada menos do que o inconsciente para se vincular _ e não faz isso sem a função alfa.


Bion refere-se então ao problema das transformações projetivas. Se pudermos usar uma metáfora para tentar ilustrá-las, podemos imaginar água infiltrando numa parede (a parede como analogia do corpo, alguma função fisiológica, ou função perceptiva) ao invés de correr pelo “encanamento” da linguagem. Essa movimentação num meio inadequado, ao longo da vida, encontra certos “obstáculos” que a faz desviar para “fora”. Este “fora” aparece como algo estranho e aparentemente desvinculado dos fenômenos originários da transformação. Por exemplo, uma cefaleia que durava anos, desaparece dando lugar a uma atitude belicosa e irresponsável [20]. A cefaleia transformou-se na atitude belicosa, mas como entender isto na teoria clássica da psicanálise?


A proposição de Bion é um modelo em que o desenvolvimento da psicanálise pode e deve ser formado por ciclos de transformação que conseguem conter todo tipo de problema. Esse modelo tem a vantagem de fornecer um comparativo das transformações analíticas com ciclos de fenômenos estéticos, como é o modelo do lago:


Em uma atmosfera calma e brilhante um lago reflete árvores situadas sobre a margem oposta ao observador. A imagem projetada pelas árvores é transformada na reflexão: uma série de transformações é efetuada por mudanças atmosféricas...”.



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O psicanalista necessita vasculhar o material do analisando tal como um pintor examina uma paisagem, em busca de invariantes que possam reconstituir uma experiência pessoal interna dessa paisagem. O analista necessita demonstrar que os objetos internos se transformaram adquirindo um novo status no material, isto é, as invariantes adquiriram nova linguagem. As primeiras experiências de vida, a relação com o seio, a mãe dos primeiros tempos, provam que é nas primeiras relações que alguma coisa corresponde à geometria e à matemática. Ou seja, a causalidade é certamente uma categoria a priori que não pode ser induzida a partir de fenômenos. Mas a causalidade, ou teoria da causação como Bion a denomina, não teria utilidade se não fosse repetidamente confirmada pela possibilidade de sua aplicação. A dimensão uso da Grade (o eixo horizontal) desenvolve-se de acordo com este parâmetro teórico.


Uma teoria das transformações admite que o movimento dos objetos implica em formas que são destruídas e criadas; assim, não podemos atingir uma compreensão do tempo, nem elucidar a sua “flecha” e a sua irreversibilidade sem levar em consideração esses dois aspectos: a criação e a destruição de formas.


A reverie é o processo inicial da vida que permite que a psique absorva ou interiorize mais efetivamente o tempo instituído pela sociedade. É impossível localizar quando isto começa, mas é inevitável concluir que começa antes do nascimento físico. As primeiras realizações da vida humana começam a introduzir as concepções de tempo público _ a partir destes conceitos o sujeito deve continuar a viver na eterna cisão entre seu tempo interno (biológico e histórico) e o tempo cronológico externo (público, instituído, e que vem inicialmente através da rotina da mãe). A transferência percebida como transformações implica na percepção de tempos diferentes: o que é algo óbvio, mas necessita ser dito. O conceito originário manifesta-se não somente na oposição horizonte-finito (no interior do qual deve ser vivido o tempo interno do indivíduo) e, no horizonte-social indefinido do tempo, mas também a maneira igualmente importante, na diferença entre ritmo e qualidade (ambos extremamente variáveis) do tempo privado e a sua constância, a fixidez do tempo público e a organização prévia das variações de sua qualidade.


Uma teoria geral do sujeito pode ser desenvolvida neste ponto através de um campo onde temos uma incógnita que possui dois valores: um sinal para conjunção constante e outro para a posição inocupada do Eu. O sujeito é todo aquele que possui a função preservada em algum grau.


Mas algumas vezes encontramos pacientes que centram sua história no sentimento de ser uma pessoa sem importância alguma, e escrava de forças que não se importam a mínima com o que aconteça com elas. Solidão e desamparo marcam a trajetória de vida gerando o sentimento de vulnerabilidade a algo completamente indiferente ao ser humano.


Poderíamos fazer uma analogia com a mais primitiva percepção que o ser humano teve da natureza a sua volta. Desde que se tornou um ser social a natureza tornou-se estranha e agindo como uma forma de consciência violenta, ávida, invejosa, impiedosa e predatória, sem respeito pela verdade, pessoas ou coisas. Uma situação que envolve uma lógica cuja premissa se baseia num objeto que não existe no social, mas quer excluir essa existência. Esse objeto é representado pelo sinal ←↑­ que indica uma função espelhada e que sofreu uma ruptura de origem desconhecida e indeterminada.


A função rompida representada por ←↑­ indica que existe um objeto não estático, significando a essência da pré-concepção, como sendo uma força que continua existindo mesmo depois que (.) tenha sido aniquilado e, desta forma, destruído espaço, tempo e a existência em qualquer profundidade.


Para Bion, o problema apresentado por ←↑­ pode ser estabelecido pela analogia com objetos existentes, isto é, com coisas que supostamente são feitas por objetos que existem: ←↑­ é caracteristicamente ávido, violento, invejoso, impiedoso, assassino e predatório, sem respeito pela verdade, pessoas ou coisas.


Mas também pode ser aquilo que Pirandello chamou de personagem em busca de um autor. Na medida em que encontrou um personagem ele parece ser uma consciência completamente imoral, dominada por uma invejosa determinação a possuir tudo dos objetos existentes, incluindo a própria existência em si. Bion nomeia essa força com a expressão urge to exist (ímpeto para existir).


As discussões na peça entre as personagens e o diretor compõem uma análise filosófica do teatro. Assim, o peso da peça divide-se entre a narrativa em si, e os aspectos para-textuais que ganham a cena. Diretor e personagens discutindo constroem uma diferença sobre as formas de fazer teatro. Os personagens, tentam mostrar ao diretor que suas vidas são reais em relação ao palco, e ele defendendo a relatividade do que está sobre o palco, toma como parâmetro a vida "real". A peça entra, assim, em um outro vértice: torna-se um estudo metalinguístico do teatro, a arte discutindo a si mesma. A forma de representação proposta pelo diretor não é aceita pelas personagens e estes não querem ser representados pelos atores da companhia. Afinal, como alguém poderia representar melhor a vida de uma personagem do que ela própria?


Para alguns pacientes acometidos pelo terror do urge to exist como uma força predatória, a regra que uma coisa não pode ao mesmo tempo ser e não ser é inadequada. Diz Bion que o problema fica simplificado por uma regra que “ uma coisa nunca pode ser, a menos que seja ao mesmo tempo que não seja”. Dizendo isso de outra forma “ uma coisa não pode existir somente na mente, nem pode uma coisa existir a não ser que ao mesmo tempo haja uma não-coisa correspondente”. Podemos aplicar aqui o teorema de Gödel do terceiro excluído.



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As regras devem ser aplicadas para ambas as proposições: coisa e não-coisa, mas quem decide é a incógnita, que num determinado momento decide a regra através de um símbolo. Se há uma não-coisa, a coisa tem que existir. Se não há uma não-coisa, a coisa não existe.


Bion dá como exemplo desta situação o personagem Falstaff, de Shakespeare. Ele não tem existência real, mas tem mais “realidade” do que pessoas que existiram de fato. Neste caso ele existe, pois estabelece a relação entre coisa e não-coisa. A literatura é capaz de fazer isso pela capacidade de estabelecer circularidade e complexidade da linguagem.


Se ( _ .) não-coisa coincide com (+. ) coisa, ou seja, se não há distinção entre coisa e não-coisa, embora ambas existam, a personalidade só tem contato com um ponto. Se eles são coincidentes o contato representa o relacionamento tênue visto em pacientes esquizoides com distúrbios graves de pensamento.


Nestes pacientes a ruptura ←↑ se torna o supremo “objeto” não-existente contendo valores supremos destinado a mantê-los como mortos. O objeto supremo aniquilado em espaço e tempo possui uma avidez consumista e inveja de tudo que existe simplesmente porque existe. O terror destes pacientes está associado a se tornar vítima deste “espaço” seja como objeto que seria devorado ou como “escravo” compelido a provar espaço com meios de satisfazer a demanda por tudo aquilo que existe. Podemos acompanhar essa situação nos chamados serial killers e indivíduos tomados de uma possessividade e ciúmes extremos que matam seus parceiros ou parceiras e depois se matam para satisfazer a esse valor supremo.


Existe a possibilidade também de aproximações com pacientes ocupando propriedade que pertence ao “espaço”, o que faz com que espaço e psique não possam coexistir. O medo que este problema gera podem ser vistos na análise de pacientes esquizoides, mas também nos claustrofóbicos. Na claustrofobia o indivíduo se sente ocupando o espaço que deveria ser de um objeto e, portanto, sem saída.


A cena do chá do Chapeleiro louco em Alice no País das Maravilhas é uma representação que se aproxima de um espaço atemporal e anespacial. Como toda hora é hora do chá não existe tempo para lavar as louças entre um chá e outro, portanto, não existe chá. O chá é um chá de desaniversário, que é algo que se comemora todos os dias menos no dia do aniversário, e para o qual está convidado o coelho que sempre está atrasado, mas seu relógio não tem ponteiros.


As tendências contraditórias atacam o fato futuro e significa inviabilizar a pré-concepção em seu caminho para existência.



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Nos pacientes fóbicos eles atacam o objeto que deveria protege-los como se fosse o objeto que os ataca. O objeto bom e o objeto mau são ambos verdadeiros e ocupam o mesmo espaço embora não possam conviver; daí surge o medo fóbico representado pela angustia de que uma mudança catastrófica vai ocorrer e cria-se o sentimento de aprisionamento no espaço aniquilando o tempo como uma faceta do objeto mau. O aprisionamento leva a pensar na morte e daí a angústia. Apliquemos aqui a expressão de Spinoza: uma pessoa livre não pensa na morte, seus processos de reflexão celebram a vida.


O processo psicanalítico


O processo psicanalítico remete o sujeito à sua origem psíquica indecidível quanto ao tempo e incognoscível quanto ao espaço_ “Onthos” _ e o faz através do processo conhecido como transformação analítica (Opus), que é o movimento que envolve sempre um confronto entre o que não se transforma e o que se transforma, ou entre o que se cria (𝛂) e o que se destrói (𝛃). Assim temos na transferência os sinais Tp𝛂 e Tp𝛃 (representado esses aspectos do analisando) e Ta𝛂 e Ta𝛃 (os aspectos do analista) convivendo com ciclos de transformações.


Bion mostra a complexidade dos aspectos muito primitivos da mente que muitas vezes são confundidos com psicose. Os estratos da psique primitiva podem até apresentar uma coexistência quase impossível, por sua complexidade, e isso pode sugerir que são modos de funcionamento da psicose. Mas a contribuição de Bion faz uma diferença. A psicose não é a simples preservação, nem mesmo a predominância desses traços e modos de funcionamento; ela é a impossibilidade de construir vínculos e a anulação das experiências emocionais, por isso uma total ausência de plasticidade do ser.


Podemos acompanhar esta discussão no capítulo sobre Newton [21]: julgado insano pelo Bispo de Berkeley por ter formulado uma teoria dos fluxos de quantidades passadas, ele fez a teoria primitiva evoluir e deu origem ao famoso texto Optics.


Alguns indivíduos, como Newton, são capazes de suportar o avanço de seu aparelho para pensar pensamentos nesta direção criativa, apesar de toda turbulência emocional a que são submetidos. São os indivíduos chamados de místicos ou gênios que Bion aborda mais extensivamente no texto Atenção e Interpretação (1970). Temos aqui a capacidade de entrar em contato com um espectro de criatividade que vai da intimidade criativa até a criatividade social onde outras mentes estão envolvidas. A discussão sobre o ato de Fé que contempla essas ideias (1970) vai ampliar a questão do que seria a criatividade do indivíduo em decorrência da busca pela verdade, e pode ser colocada na seguinte frase:


Se a análise for bem-sucedida na reparação evolutiva do Self, ele (o paciente) aproxima-se de ser a pessoa que sempre deveria ter sido. Isto só ocorre na transição de “sabendo sobre” a realidade da própria vida para “tornar-se” essa realidade na vida”.


Reparação evolutiva pode ser entendido como a ação psicanalítica sobre algum desastre da função alfa ocorrido na infância. Se esse desastre é acompanhado de sentimentos de privação torna-se muito difícil a saída da infância pela dificuldade de reparação dos objetos. O indivíduo fica preso na restauração impossível.


A entrada na puberdade é sempre decorrência da forma como a infância foi deixada. Se a frustração e as perdas são incontornáveis a parte psicótica fica muito dominante e permanece como turbulência emocional latente.


Na adolescência a turbulência volta à tona. O único contraponto a esse desastre psíquico é a parte não psicótica que precisa tolerar frustração, portanto, ter consciência de temporalidade (aguardar significa aceitar o tempo). O aguardar significa também tolerar culpa e depressão, ou seja, aceitar a causalidade (vínculos), e daí pode ter responsabilidade, capacidade para verbalização e navegação com senso comum.


Causa sempre envolve duas facetas: no domínio da ontologia necessita de uma origem e no domínio da epistemologia a existência de um vínculo. Quando existe essa simultaneidade temos crescimento. Assim crescimento é simultaneamente a relação entre origem e vínculo.


No exemplo da ação da reverie, a mãe verbaliza para o bebê seus sentimentos no ato de amamentação sendo simultaneamente capaz de olhar amorosamente para o ato em si. O olhar transmite o sentido de responsabilidade e de causalidade. Temos a sequência palavra -> olhar ⟹ integração sensorial. A melhor forma de expressá-lo é a imagem holográfica complexa.


O sucesso desse circuito compara-se a formação de um sistema de navegação semelhante ao de uma aeronave. O navegador usa um horizonte artificial que pode registrar e comunicar parâmetros (vínculo K).



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A relação entre os parâmetros e o horizonte fixo (o sujeito) pode ser visto pela complexidade que existe entre continente e conteúdo. Para começar a visualizá-la podemos considerar o que ela representa da relação Eu/Não-Eu. Existem graus de compatibilidade variada entre Eu e Não-Eu; que vão da simples aceitação à rejeição absoluta. Somente os acordos tornam possível a relação, e esses acordos são fornecidos por fatos selecionados. O fato selecionado fornece tempo e espaço. Na relação e negociação entre tempo e espaço entra a complexidade e a configuração edípica como pré-concepção.


Por esse exemplo, a complexidade deve ser buscada onde ela parece ausente, como por exemplo, em relatos da vida cotidiana, fatos que parecem triviais e simples como a amamentação e a gestação, ou como o riso e o sonho, o esquecimento e o erro, a infância e o estranho, a emoção e a ilusão. Investigar as coisas banais da vida de todos os dias para com isto descobrir o caminho de uma verdade e construir uma sabedoria.


Nos textos Memória do Futuro, Bion tenta mostrar sua intuição no trabalho analítico descrevendo não teorias, mas a complexidade de cada personagem que lhe vieram a mente enquanto estava trabalhando, os personagens jogando seus papeis sociais, e conforme se esteja em casa, com conhecidos e com desconhecidos, podemos observar como cada um tem sua identidade, e no todo uma multiplicidade de personalidades dialoga num mundo de fantasias e de sonhos que acompanham a vida de cada um.


A aceitação da complexidade é a aceitação de uma ideia que não pode esconder as contradições, a menos que utilizemos uma visão eufórica, ou visão desesperada, ou visão melancólica de mundo. Certamente que com isso podemos dizer que a psicanálise não se propõe a psicanálise alcançar a felicidade, mas a psicanálise melhora a vida das pessoas, lhes dá condições de buscar sabedoria. Uma pessoa que faz análise não vai ficar feliz, mas ela se descobre capaz de ir atrás de uma sabedoria perdida que poderá ter aproximações com a vida.


A complexidade encontra-se onde não se pode superar uma contradição e se apresenta com os traços inquietantes do emaranhado, do inextricável, da desordem, da ambiguidade, e sobretudo, da incerteza.


As formulações acima podem ser traduzidas pela seguinte frase de Bion: O bebê experimenta aquilo que pode ser chamado de fantasmas do futuro. (pg. 117)


Os fantasmas do futuro pertencem a ordem da relação continente/conteúdo e da forma como essa se estrutura. A principal questão que temos que observar é a contradição entre continente e conteúdo. Podemos fazer isso usando um equipamento teórico que Bion lista na página 68:


1) A teoria da identificação projetiva e clivagem, mecanismos pelos quais o seio fornece aquilo que o paciente mais tarde considera coo seu próprio aparelho para a função alfa.

2) A teoria que algumas personalidades não podem tolerar frustração (não –seio que deveria produzir pensamento).

3) A teoria que uma personalidade com uma poderosa dotação de inveja tende a desnudar seus objetos tanto por despojamento como por exaustão (inveja espoliativa)

4) A teoria que da situação edípica representada por objetos parciais

5) A teoria kleiniana da inveja e voracidade

6) A teoria que pensamento primitivo surge da experiência de um objeto não-existente ou, em outros termos, do lugar que se espera que o objeto esteja, mas não está.

7) A teoria da violência em funções primitivas.


Essas teorias_ como extensões da situação edípica_ devem estar presentes na mente do analista numa forma que lhes permita serem representadas numa ampla gama de categorias da Grade. (pg.68). Essas teorias na realidade são fatores que atuam na reverie/ função alfa.


Vou exemplificar como podemos utilizar essa lista de teorias de Bion para descrever as transformações. A relação continente/conteúdo é representada pelo símbolo feminino espelho de Vênus (♀) e o masculino escudo de Marte (♂). A relação (♀) / (♂) se altera com a existência de determinadas forças operantes representadas pelas teorias acima e se expressam criando os tipos de transformações.


Para que a teoria seja claramente edípica posso representar o produto das transformações no vínculo continente/conteúdo como sendo o terceiro. Esse representa a relação em graus de divergência entre (♀) / (♂); ou seja, o tipo de divergência seria o terceiro.


A forma como represento leva em conta as seguintes situações que fazem parte dos capítulos IV, V, VI, VII; a saber: divergência entre expectativa e comunicação do material clínico, abordagem estética e abordagem científica, presença e ausência do analista, teoria do paciente e teoria do analista, abstração e fato selecionado, significante e significado, relacionamento do paciente com o analista e com ele mesmo, pensamentos e aparelho para pensar, ponto e linha, significado do fato e sentimentos de perseguição, depressão e superego cruel, onisciência e indagação, ciência e moral, amor narcísico e amor objetal.


A primeira teoria diz respeito a habilidade da mãe de aceitar as identificações projetivas do bebê e a sua falha associa-se com perturbações no entendimento.


Diz Bion: Também podemos considerar complicações existentes de uma mãe extremamente compreensiva em virtude da habilidade para aceitar a identificação projetiva. Uma reação associada a isso parece uma desordem do caráter, uma má vontade de encarar a perda do estado idílico por uma nova fase e supressão da nova fase porque ela envolve dor. É contra esse pano de fundo para alucinose, identificação projetiva, clivagem e perseguição, aceitas como estado idealmente feliz que desejo considerar o domínio da comunicação verbal. (pg. 80).


Uma relação harmônica entre (♀) / (♂) deve levar em conta a identificação projetiva sem excluir a depressão pela impossibilidade de o continente acolher plenamente o Não-Eu (conteúdo). Podemos chamar esse tipo de transformação de transformação em K. Sua direção pode ser tanto no sentido de aceitação da comunicação como produtora da transformação em O, ou seja, a incorporação do significado como próprio ao crescimento, ou no sentido da divergência que pode ser expressa pelo mito de Babel: a comunicação não é entendida no decorrer do desenvolvimento. Mas em geral a transformação em K envolve uma relação em que continente e conteúdo estão em relativa harmonia, sem esmagamento do conteúdo além dessas incompreensões que são solucionadas pelo tempo de convívio e aceitação das diferenças.


Usando o mesmo mito, que envolve questões de onipotência da comunicação e frustração, adicionaremos a teoria 4: a existência da mente humana edípica trazendo sempre objetos incompletos, o que geraria uma área de divergências que é preenchida por equívocos e mal-entendidos cuja explicação será buscada no passado_ como se esse apenas se reproduzisse de forma incômoda no presente_ temos então a transformação em moção rígida.


Usando o mito da Esfinge podemos passar para um aumento da divergência entre continente e conteúdo pelo acréscimo das teorias 7 e 6, gerando uma área que é preenchida por falsidades além dos mal-entendidos e equívocos. Aqui temos a transformação projetiva.


Por exemplo, o analista pode não conseguir ver uma sessão além do superficial. A situação de incomoda pode chegar a um clima que é enfadonho e inexpressivo. Mas a experiência emocional intensa que está sendo inefável existe e deveria ser inconfundível, daí podemos considerar a transformação projetiva encobrindo a emoção intensa que não cessa de existir.

Podemos situar a ausência de emoções como sendo um segredo que é criado pelo temor de perder o próprio sexo no intento de conseguir o outro. Podemos colocar esse problema no segredo da Esfinge: Édipo como não pode se separar naturalmente da mãe ao nascer volta mais tarde para enfrenta-la e penetrá-la.


Se acrescentarmos as teorias 3 e 5 teremos um espaço ainda maior de divergência entre continente e conteúdo. Esse espaço é preenchido por mentiras além dos elementos de divergência presentes nas outras transformações. Esta é a transformação em alucinose.


Diversas partes do mito edípico podem ser aplicadas para ilustrar a transformação em alucinose. Por exemplo, podemos colocar o problema na encruzilhada entre Daulios e Delfos. Édipo versus Laio.


O vértice da rivalidade pode ser colocado no plano individual, mas a teoria das transformações tem a vantagem de mostrar um modelo espectral em que se pode trabalhar simultaneamente uma série de elementos como a rivalidade, a crueldade do superego, o sofrimento na tarefa, as mentiras, o sentimento de superioridade versus o sentimento de inferioridade, a lógica moral e as falsas premissas que geram ciclos de argumentos defensivos onde onipotência e desamparo podem ser confrontados.


Podemos entender a transformação em alucinose pela luta entre feminino e masculino, uma luta na qual além das invejas mútuas, além da luta pelo poder com acusações morais, existe a fantasia mais profunda de todas que é a luta pela posse do filho, enquanto depositário da continuidade da vida. A estratégia dessa luta se desenvolve pelo desejo de tomar do sexo oposto os órgãos complementares da procriação. Os temores do continente feminino ante a voracidade do masculino levam a defender o fruto de seu ventre, o filho, convertendo-o em fogo misterioso da vida.


A hipótese do conteúdo esmagado pela lógica moral e com grande perda de sintonia com o continente foi uma das perspectivas mencionadas. O espaço de dissintonia entre continente e conteúdo é preenchido por mentiras. E essas têm uma amplitude clínica bem significativa.

O trecho da Eneida, a morte de Palinurus, pode ser aqui utilizado para gerar diversas conjecturas imaginativas:


Somnus, a onipotência, foi narcisicamente ferido pela contestação de Palinurus. Seu ódio vem à tona e é como ele se indagasse: Quem é este arrogante humano que desafia um Deus com uma lógica diferente?


Mas seria o Deus a lógica moral do fundamentalismo? A fúria contra quem pensa (os hereges ou infiéis)?


Um analista que está “amarrado” a uma teoria pode ser uma representação do Palinurus desamparado e amarrado ao timão. Ele pode estar amarrado a uma fidelidade teórica institucional. Com isto pode fazer intervenções da natureza de uma transformação em alucinose; o que simbolicamente pode representar matar o analisando ao agir também como o Deus Somnus?


Drogado pelo Deus do sono, Palinurus é atirado ao mar com fúria e ruído. Enéas, o capitão da frota, acorda e coloca em si mesmo o capacete de timoneiro assumindo a tarefa. Inconsciente da influência do Deus Somnus, ele acusa Palinurus de complacência e negligencia. O mesmo pode ocorrer com o analista que usa memória, desejo e necessidade de compreensão? O quão drogado podemos ficar com esses elementos em ação no nosso estado mental?


Outra interpretação diz respeito ao uso de mentiras. Somnus disfarçado de humano mente para Palinurus. O mentiroso fornece material para as fantasias de onipotência porque ao invés de falar a verdade, ele simplesmente não registra a história – ele faz algo no lugar de registrar. Registrar, falar a verdade é para o mentiroso meramente uma insignificante engrenagem na totalidade de uma máquina [22].


O indivíduo que não tolera a frustração inerente à incerteza de qualquer projeto pessoal, incluindo a psicanálise, geralmente é muito ambicioso, o que o torna voraz e sem limites éticos para suas ações. Examinamos aqui neste exemplo a relação entre narcisismo e significado no espectro narcisismo ----social-ismo, como sugere Bion.


Os resultados das ações de um indivíduo como este só atendem a sua voracidade e ambição. Mentir torna-se algo tão corriqueiro que o mentiroso chega a se indignar quando alguém fala a verdade. Certamente que a verdade calcada nos fatos e na legalidade é interpretada como um golpe contra ele. Este estado mental é equivalente ao paciente que faz ataques após ataques sobre os objetos pelos quais é perseguido.

Como Palinurus pode ter a ousadia de se negar a atender o Deus Somnus? Pelo vértice de Palinurus, certamente ele foi muito otimista em suas avaliações e não pode compreender a realidade da mente do Deus_ seja lá qual for essa realidade_ e sobre a qual não se pode falar sem levar em conta o seu oposto, o Diabo.


Investigar sobre o uso das mentiras é sempre prudente. O mentiroso fornece material para alimentar plateias com fantasias de onipotência. “As ações são superiores as palavras”, frequentemente é o lema do mentiroso. Precisamos tentar não nos enganar com o fato de que quando relata algo o mentiroso está na verdade agindo.


O conceito aplicado ao universo político pode ser ampliado para todas as personalidades nas quais predomina a intolerância a frustração, junto com grande ambição. Em todos os casos, a voracidade tende a dominar o “resultado” e este só pode ser mais voracidade e o temor reverencial. Quando existe temor reverencial o sujeito age “como se” respeitasse o interlocutor, mas no fundo o despreza. O “fim”, ou “objetivo”, ou “meta” de qualquer atividade onde os fatores da personalidade acima descritos estão presentes precipitam prematuridade e precocidade. Palinurus deslocou seu temor reverencial para o mar. Chama o mar de monstro. O Deus provavelmente sabia de quem Palinurus falava.


O indivíduo imaturo, ou o que age prematuramente, sem prudência em suas ações, tem dificuldade para aceitar a vida real, pois a frustração é uma característica essencial da vida real.


A frustração também é uma característica da análise. No mínimo a frustração da ação. A sugestão da análise é que se deve pensar primeiro para agir depois.


A conjunção constante intolerância a frustração, somada com ambição pode perpetuar um ciclo onde o pensamento é substituído por onipotência. Como o pé na realidade se perde aumenta a frustração, negando à personalidade a moderação que o pensar pode fornecer. Esse ciclo empurra em direção à violência, roubo e assassinato como possibilidades de ações de superegos possíveis em um espectro que começa com o superego social [23].


A prematura aquisição de um objeto supostamente valioso significa que seu valor genuíno não pode trazer satisfação, porque a maturidade requerida para efetuar a transformação de potencial para real está faltando. Sexo pode muito frequentemente estar contido neste tipo de área de desilusão. Certamente que sexo entre duas pessoas deve trazer prazer e desenvolver a maturidade entre elas, se assim for decidido pelos sentimentos do vínculo. Todavia, quando uma criança é exposta ao sexo por um adulto, o que se denomina de abuso sexual, qualquer que seja a forma direta ou indireta da exposição, a criança não tem condições de amadurecer com o fato ao qual foi exposta. E aí temos mais tarde os quadros de alucinação, assimetria e deterioração que caracterizam as patologias de pessoas que sofreram abuso sexual. O ato no fundo é sentido como violência de objetos edípicos.


O termo “onipotência” utilizado numa “construção” é muito abstrato para dar uma ideia da realidade que o analista necessita evidenciar. Onipotência, onisciência, Deus, são junto com os elementos simétricos desamparo, incompreensão, agnosticismo, são afirmações ainda muito abstratas. A questão é encontrar uma versão C desses elementos, uma formulação visual dos mesmos que atue como um sonhar (função alfa).


Por exemplo, um paciente com transformações em Alucinose, que tem na relação continente/ conteúdo a ação de todos os sete elementos listados por Bion (1965), ao contrário de um paciente que faz transformações em K (que possui apenas a identificação projetiva fornecendo função alfa), pode não permitir ser observado apesar de ser esta a base da ajuda que o analista pode lhe dar. O paciente não permite, portanto, ser ele mesmo e, portanto, não suporta ter um analista verdadeiro. Ele procura estabelecer os termos das negociações da relação e perigosamente sempre tem uma resposta para tudo. Nota-se no discurso uma generalização crescente como se cada associação tivesse a mesma importância rasa das demais. Por exemplo, ele diz: Hoje não trouxe seu pagamento, porque me esqueci de ir ao banco tirar o dinheiro. Mas também o Banco vive sempre cheio... E pensei que você não se importaria, pois tem fama de analista bem sucedido.... Que carro você tem? ... .... Não quer responder não precisa.... Ontem fui a uma festa da pesada, acordei de ressaca. Lá estava aquela minha ex-namorada. Minha cabeça está doendo... Bebida ruim..., mas o que eu estava mesmo dizendo? Ah, sim, ela veio falar comigo e eu virei a cara, e disse, vai se fuder...ela ficou com lágrimas nos olhos, não estou nem aí.


Podemos dizer que a conversa com o analista sofre ataques de cisão para criar uma espécie de estado sensorial sem afeto ou consciência moral da experiência vivida. Como esse não é o objetivo da análise podemos inferir que o paciente está certamente se equivocando progressivamente.


Suas colocações são generalizações que lembram o político no discurso fazendo alusão a “eles” (supostamente seus opositores), ou que usa de conceitos tais como “o povo” ou “as elites”, e que nada querem dizer de específico.


Este paciente culpa a bebida por suas ações destrutivas, se faz de vítima, e sente-se perseguido por quem não concorda com ele. No seu discurso não existem detalhes, e o plano das associações sugere acompanhar as transformações de uma imagem concreta de linhas espalhadas a partir de um centro que se perdeu.


Este é um ponto onde o analista necessita libertar sua imaginação e assim fazendo traz para si a frase de Skakespeare em Henrique IV: “Tendes um rufião que jura, bebe, dança, passa a noite em orgia, comete roubo e assassinato e conhece a arte de cometer os mais velhos crimes da maneira mais nova”.


Podemos colocar o que acontece _ usando uma abstração de elementos _ numa sequência que representa com letras as associações do paciente:



ree

Nessa sequência, uma letra é excluída em cada associação, ou que em cada associação uma das letras sofre uma queda no espaço do ritmo. Na passagem da primeira para a segunda associação cai o a, d segunda para a terceira o b, da terceira para a quarta o c e assim sucessivamente.



ree

As letras caídas fornecem uma sequência associativa inteligível como a, b, c, d. Por outro lado, indicam uma linguagem oculta: uma espécie de ordem oculta da transferência. O problema do analista é usar suas conjecturas imaginativas e conjecturas racionais para captar essa ordem oculta e transformá-la em interpretação.


Cada transformação tem sua ordem oculta específica que já foi descrita ao ser ressaltada a temporalidade correspondente. Aqui os elementos de ligação da escrita são uma espécie de logos mudo, uma palavra caída que não pode nem dizer de outro modo o que diz, nem parar de falar. A essa palavra, a um tempo só muda e tagarela, opõe-se uma palavra em ato, uma palavra guiada por um significado a ser transmitido e com efeito a ser assegurado. Trata-se da palavra do herói trágico, Édipo, que vai até o fim de suas vontades e paixões.

Também existe aqui numa espécie de regra dos sentimentos que pode ser criada na seguinte sequência:


. .. .... ..... ......

.. .... ..... ......


Se ampliarmos as variáveis, ampliando as indagações, essas representadas pelos pontos, surgem pensamentos unindo os sentimentos que se ampliam a cada passo. Essa observação não é só a de uma forma reveladora de ausência de pensamento, mas, é também uma presença eficaz de seu oposto – o pensamento em si mesmo. Há, portanto, uma identidade entre o pensamento e o não pensamento, a qual é dotada de uma potência específica, representada em Bion (1965) pelo “O”. A esse pensamento corresponde um estatuto específico da palavra. Aqui coloca-se em jogo a ideia da própria palavra e de sua potência específica de linguagem.

Mais uma vez, essa é a linguagem que Bion (1970) designa como Linguagem de êxito, expressão do poeta Keats quando se referiu à capacidade que permitiu a Shakespeare escrever, ou seja, a capacidade negativa. Em poucas palavras, a capacidade da mente depende da capacidade do inconsciente que é a capacidade negativa (Cogitações, pg.313).


Keats formulou-a como uma capacidade de tolerar as incertezas, as meias verdade, e os mistérios, sem uma tentativa precipitada de chegar a uma compreensão. Em tempo, cada um dos termos da expressão contempla um dos aspectos do objeto psicanalítico. As Incertezas correspondem a pré-concepção, as meias verdades correspondem às concepções no espectro narcisismo/ social-ismo, e os mistérios correspondem ao fator M, ou seja, a complexidade do sistema aberto. Portanto, a capacidade de tolerar o objeto psicanalítico significa ter capacidade negativa e vice-versa.


{ψ (ξ) (±Y) (M)}

ψ (ξ) -----pré-concepção--------------------------Incertezas

(±Y) -------espectro de concepções--------------meias-verdades

(M) --------complexidade--------------------------mistérios


O paciente em questão despeja nas associações sua inveja insidiosa oculta, fazendo parecer que nada fala sobre isso. Contudo, esse sentimento o fez esquecer o pagamento, e o fez ter como desculpa_ a modo da transformação em alucinose_ uma lógica moral: que o analista tem dinheiro e assim não precisa do pagamento. O analisando procura justificar isso inserindo o elemento de sua voracidade que indaga sobre os bens do analista. Na sessão, diante dos elementos captados, o analista pode descrever o desacordo entre continente e conteúdo da transformação em Alucinose. Um desacordo regido pela mentira, rivalidade com O, crueldade, e violência, através do qual o paciente especifica a sua tragédia. Ele estabelece com o esquecimento sua justificativa para a situação de dependência da análise para se desenvolver como indivíduo, e com a Alucinose tenta destruir todos os significados inerentes a sua responsabilidade.


Uma descrição para o paciente de suas associações pode ser o primeiro passo de um diálogo sobre o desacordo em curso. Mostra-se então a ordem que as estabelece como uma ordem oculta, mas também como uma ordem aberta à correção do paciente. A participação do analisando no trabalho da análise é fundamental. Sobretudo, em se permitir ver a premissa falsa sobre a qual montou sua lógica.


Certamente que sua forma de associar também revela que existe o sentimento de insatisfação com a análise, mas um exame mais detalhado mostra que ele é produzido pela não integração dos aspectos de sua vida. Preso a atividades destrutivas, o analisando não pode dar ao Outro_ e nem a si próprio_ a liberdade de ir e vir. Se ele se permite a liberdade de Ser, este é um momento em que pode ter uma ideia significativa do que é ser outra pessoa diferente da que tem sido.


Toda insatisfação proveniente da não integração atrai a parte psicótica, mantendo-a ativa. A falta de integração sugere a presença de relações primitivas que traduzem a sensação de estar cerceado.


A frase de Shakespeare que ocorreu ao analista pode ser tomada como um exemplo de sonho que permite a fusão das conjecturas imaginativas (intuição) e conjecturas racionais (teorias psicanalíticas). Uma espécie de sonho acordado que tenta interpretar as associações captando o vértice da sentença caída nos interstícios das associações.


Os vínculos da experiência emocional estão contemplados pela interpretação simétrica que foi dada entre gratidão e inveja: não podendo ser grato nem a si próprio e muito menos ao analista, o analisando desqualifica pela ação da inveja os objetos que podem produzir crescimento.


REFERÊNCIAS


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[1] Particularmente no Brasil, este texto foi intensamente estudado e valorizado, com contribuições originais tais como o conceito de Transformações autísticas desenvolvido por Celia Fix e, os desenvolvimentos sobre a teoria da complexidade e os princípios ético-estéticos esclarecidos por Arnaldo Chuster e colaboradores (1999, 2002, 2012, 2014, 2018). [2] J.W. Dauben, Georg Cantor: His Mathematics and Philosophy of the Infinite; Cambridge, Massachusetts, 1979. [3] Kurt Gödell collected works, edited by Solomon Feferman, Clarendon, 2014 [4]The uncertainty principle, in. Stanford Encyclopedia of philosophy, 2017 [5] B.B. Mandelbrot, The Fractal Geometry of Nature; W.H. Freeman and Company, Nova Iorque, 1975. [6] Kellert, Stephen H. (1993). In the Wake of Chaos: Unpredictable Order in Dynamical Systems. University of Chicago Press. p. 32. [7] Morin, Edgar; Meus Filósofos, editora Sulina, Porto Alegre, 2012. [8] “ Amarração” tem o significado de “ideia” – no sentido grego de dar uma aparência, uma possibilidade de visão (eidos=visão) de elementos conjugados ou no geral uma forma (Platão/Kant). [9] O nome Holografia vem do grego holos (todo, inteiro) e graphos (sinal, escrita), pois é um método de registro "integral" da informação com relevo e profundidade. Os hologramas possuem uma característica única: cada parte deles possui a informação do todo ("distributividade"). Assim, um pequeno pedaço de um holograma tem informações da imagem do mesmo holograma completo. Ela poderá ser vista na íntegra, mas a partir de um ângulo restrito. Uma comparação simplista pode ser feita com uma janela: se a cobrirmos, deixando um pequeno buraco na cobertura, permitiremos a um espectador continuar a observar a paisagem do outro lado, porém, por conta do buraco, de um ângulo muito restrito; mas ainda se conseguirá ver a paisagem. Este conceito de registro "total", no qual cada parte possui a informações do todo, é utilizado em outras áreas, como na Neurociência para explicar como o cérebro armazena as informações ou como a nossa memória funciona. [10] Finnegans Wake é o último romance de James Joyce publicado em 1939, e um dos grades marcos da literatura experimental por ser escrito em linguagem composta pela fusão de outras palavras, em inglês e outras línguas, buscando uma multiplicidade de significados e trocadilhos. [11] Heisenberg, W.; Physics and Philosophy, the revolution in modern Science, Unwin University Books, Great Britain, 2002. [12] KREYSZIG, Erwin. Introductory Funcional Analysis with Applications. New York: John Wiley e Sons, 1978. [13] Fora dos casos triviais (finitos), existem proposições indecidíveis na matemática; onde a coerência dos sistemas formais nunca pode ser demonstrada no interior desses sistemas, que algum modelo, indicando precisamente se uma proposição é ou não decidível, nunca poderá existir. Para a psicanálise isto significa que a interdependência das dimensões em jogo no processo de observação possui um entrelaçamento incontornável. Cada novo passo em uma das dimensões remete novamente à outra – e vice-versa. Todo conhecimento é coprodução e, nos casos não triviais, realmente não podemos separar o que “provém” do sujeito e o que “provém” do objeto. Para o observador limite, a questão de saber, em um sentido último, o que vem dele e o que vem do observado é indecidível. Não há como fazer psicanálise fora do vínculo, caso contrário aparece o ilusório da proveniência. A menos que se considere como psicanálise as proposições decidíveis, sempre superficiais, da natureza dos fenômenos triviais. [14] No “pré” temos uma fenomenologia que consiste em aparente ausência de emoções, falta de sinais de mudança externa, predominância de sintomas “hipocondríacos” (incluindo o sentido comum das somatizações), a violência é teórica, confinada aos fenômenos do insight analítico, o material do analisando presta-se a interpretações baseadas em teorias kleinianas da presença da identificação projetiva nas ligações entre os objetos externos e internos, o discurso do analisando sugere que seu comportamento aparentemente civilizado estivesse causando grande transtorno ou destruição- ao qual o analista fornece interpretações que indagam estas características que o analisado julga violentas. No “pós” as características são: emoções perceptíveis e despertadas no analista, os elementos hipocondríacos diminuem, a mudança se expressa como experiência emocional, a violência é manifesta, parece estar faltando racionalidade ao analisando, o analista busca invariantes e tem que demonstrar que os objetos internos transformaram-se adquirindo novo status no mundo externo e no material. Por exemplo, um “pigarro nervoso” transformou-se em algum ato hostil na realidade externa. [15] A tradição de indagação filosófica sobre a dimensão temporal pode ser traçada em Hegel, Husserl, William James, Bergson, Whitehead e, sobretudo, Heidegger. Ela aponta para a discussão da articulação tempo com o determinismo, encontrada no centro do pensamento ocidental desde a origem do que chamamos de racionalidade e que se pode situar na época pré-socrática. Todavia, a introdução do Princípio da Incerteza vai inevitavelmente gerar uma questão: Como conceber a criatividade humana ou como pensar a ética num mundo determinista? E como pensar de uma forma diferente? Essa questão traduz uma tensão profunda no interior de nossa tradição, que se pretende, ao mesmo tempo, promotora de um saber objetivo e afirmação de um ideal humanista de responsabilidade e de liberdade. [16] Foi provavelmente neste ponto de “enlouquecimento” que num passado remoto nossos ancestrais fizeram o esforço de criação conhecido como escrita linear capaz de traduzir cenas em processos de linguagem. Surgiu a primeira consciência histórica, consciência dirigida contra as imagens que se pretendiam tirânicas. Fato nitidamente observável nos pré-socráticos e nos profetas hebreus. Curiosamente, a luta inicial da escrita era contra a imagem conectada à consciência mágica (alucinose). [17] A frase de Blake em Proverbs of Hell também ilustra bem essa sucessão: what is now proved was once only imagin’d. (Aquilo que foi provado, antes foi imaginado). Acrescento aqui um dito de Mario Quintana “Não há besteira de agora que não tenha sido dita por um sábio grego de outrora”. [18] Bion não explica o que quer dizer com isto. [19] Também não há explicação do que seja isto. [20] Bion diz: “Em pessoas gravemente perturbadas, uma transformação T (paciente) pode ser uma deformação. Este paciente, abandonando uma transformação por outra, pode produzir T2(paciente)𝛃. Supondo que T2(paciente)𝛃 é uma massa informe, o termo ‘deformação’ provavelmente não enganará. Mas se T2(paciente)𝛂 é a experiência do paciente de ser cumprimentado (pelo analista) eT2(paciente)𝛃 é a representação do evento como ataque hostil do médico, pode seriamente obstruir a compreensão do que aconteceu na mente do paciente ao supor que T2 ou T2𝛃 tem ou são formas”. [21] Sir Isaac Newton (1642-1727). O matemático, filósofo e cientista inglês, autor da teoria gravitacional, mecânica terrestre e do cálculo diferencial é o personagem do capítulo 12. Bion descreve as críticas do Bispo de Berkeley contra exposição de Newton do cálculo diferencial ótico, mencionando a incoerência da teoria dos “espectros de quantidades idas”. Do ponto de vista psicanalítico, podemos entender que o trabalho de Newton, concebido durante uma “crise emocional”, refere-se a ausência de um objeto e os fantasmas decorrentes desta experiência. Para Bion, o enunciado de Newton do cálculo diferencial é uma transformação em K “os espectros de quantidades idas” expressam a dimensão negativa coluna 1 de seu enunciado (hipótese definitória), ou seja, o que não é objeto. A formulação de Berkeley, é uma contribuição F3 (conceito usado como notação). Seu polêmico lhe confere a categoria 2 (ψ) que nega a veracidade do método de Newton, embora reconhecendo a veracidade e o resultado - o tom irônico contesta a realidade dos “espectros”. Bion parece enfatizar que o rigor lógico usado por Berkeley é uma forma de adequação, e os lógicos tendem a admitir o rigor lógico como condição sine qua non. Daí o descaso completo, até do próprio Newton, pelas pré-ocupações teológicas e místicas, como se nada tivessem a ver com a gênese da Optiks. Todavia, essas pré-ocupações originaram as concepções matemáticas da obra: a transformação em O. [22] Com efeito, isso significa que na personalidade na qual a intolerância a frustração coexiste com grande ambição, a voracidade tende a dominar e o “resultado” domina com voracidade. [23] Espectro de superegos: Assassino<-➔ladrão-----(parasitário)-----violento------(simbiótico)------repressor-------social (comensal)

 
 
 

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