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W. R. Bion: Uma obra generosa

  • achusterblog
  • há 7 dias
  • 33 min de leitura

Conferência conferida por Arnaldo Chuster [1] na XIV Jornada Psicanálise-Bion (SBPSP) de 2022


Em primeiro lugar, gostaria de agradecer profundamente ao honroso convite feito pelo expressivo carinho e admirável dinamismo de Evelise Marra, coordenadora da Jornada Bion. O agradecimento é extensivo a toda Comissão Organizadora, e à SBPSP, por mais esta oportunidade de expor algumas de minhas ideias sobre a obra de W.R.Bion - uma obra que abordarei de uma forma geral pelo vértice da generosidade para com nosso trabalho de psicanalistas. 


Entendo que nessa exposição não tenho tempo para abordar todas as contribuições de Bion para a psicanálise, como gostaria, não obstante expressei meu sentimento dando um título geral, com uma característica, que inegavelmente também emana dos membros da Comissão Organizadora, e demais apresentadores do evento que hoje atinge a sua XIV versão. 


Introdução


O dia estava amanhecendo no Rio de Janeiro quando comecei a escrever este texto, aguardando diante da tela em branco do computador, por alguma ideia que desse um ponto de partida. 


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Meus primeiros pensamentos estabeleceram relações entre esse período fugaz do dia_ que tem uma estética muito particular _ com conceitos muito significativos da obra de Bion, relativos a momentos de transição, como são os conceitos de realização, experiência emocional, transformações, “O”, turbulência emocional, mudança de vértices, cesura, linguagem de alcance psicanalítico


Sobre esses conceitos dedicarei minha exposição. 


A Transitoriedade


Quando penso no todo da obra de Bion a imagino como uma estrada, construída passo a passo num desdobramento incessante de questões originais que levam a mais questões_ que oferecem de uma forma profunda elementos essenciais ao pensar psicanalítico, tais como busca da verdade, liberdade, infinitude, ética, estética e espaços abertos


São elementos fundamentais para a vida mental e a vida em geral. Agregam qualidade à vida psíquica, enquanto permitem dialogar com o vigor da ética e da estética do pensar e, sobretudo, de que modo estas facetas colocam em questão a nossa existência como psicanalistas e a qualidade dessa existência (Bion, 1979).


Tais elementos, e seus consequentes questionamentos, produzem uma espécie de encantamento, palavra inspirada na poética (que utilizo de forma particular), para falar sobre os sonhos, mitos e pensamentos oníricos, e tudo aquilo que esses elementos transitórios fornecem a nossa imaginação produtora


A dimensão onírica sempre favorece ao sonhador criterioso, assim como o acaso favorece o observador preparado.


A psicanálise em Bion, utilizando-se intimamente da dimensão onírica, observa como a vida em si implica numa contínua transição entre um espaço interno e um espaço externo, um movimento incessante de ir e vir nestes espaços, paradigma do sonho/vigília, através de uma cesura


O termo cesura, símbolo em Freud do limite entre a vida intrauterina e a vida extrauterina_ significa mais amplamente, em Bion, a constante transição entre o mundo regido pelo acaso para o mundo regido pelas escolhas. Essas duas possibilidades existem ao longo de toda a vida, e o momento de confronto entre elas traz sempre turbulência emocional. Por sua vez, a turbulência expõe a nossa sensibilidade, nossos conflitos, empenhos, desempenhos, aspirações, pensamentos, criações e falhas...Trata-se de uma entidade infinitamente plástica, que faz jus a seu significado, na poesia, de pausa no interior de um verso. 


Pelo vértice epistemológico, penso que as contribuições originais de Bion surgem em decorrência do uso que ele fez progressivamente dos sistemas espectrais abertos. [2] Tais sistemas são configurados pelo universo dos objetos complexos, não-lineares, não-explicativos, não-diagnósticos em oposição aos sistemas simples, lineares, que são explicativos e diagnósticos - estes últimos, mesmo que se abram para acolher elementos novos, voltam logo a se fechar.


Pelo vértice psicanalítico, penso que Bion seguiu no sentido mais radical um dos primeiros e mais fundamentais descobrimentos de Freud, o Complexo de Édipo, pedra angular da psicanálise, e que se constitui até hoje no seu principal fundamento. Portanto, a relação do psicanalista com esse fundamento é determinante de sua condição profissional. Ser ou não ser psicanalista depende - entre outras coisas - de sua compreensão e fidelidade a este fundamento que fornece a raiz intuitiva da psicanálise. 


A indissolubilidade na psicanálise entre intuição e mito de Édipo, foi acolhida por Bion de forma radical e original, generosa em todas suas teorias, a começar da leitura ampla do mito, considerando suas duas versões, sendo uma dominada pela arrogância e a outra dominada pela busca do saber, que terá na pré-concepção e sua expansão no objeto psicanalítico_ uma expressão igualmente muito ilustrativa dos sistemas abertos, espectrais e dialógicos


A noção de sistema aberto aponta em Bion para a configuração edípica existindo desde sempre, representando antes do mais a tridimensionalidade constitutiva da mente humana, através de uma função que tem como eixos espaço, tempo e profundidade da existência. Esses três parâmetros, contemplados na ideia de função que é a pré-concepção, formulam a busca (realização) do que necessitamos para o desenrolar de nossas vidas humanas. 


Quando pensamos com a complexidade fornecida por essas ideias outra forma de trabalhar em psicanálise aparece. Espero até o final de minha exposição esclarecer essa afirmativa.


Um exemplo psicanalítico de sistema aberto e complexo: a transformação em “O”


Em trabalhos anteriores (Chuster,1997, 1999, 2006, 2014, 2018, 2020, 2021,2022) adotei a estética do personagem Satã de John Milton, em Paradise Lost, [3] como alegoria para o conceito de Transformação em “O” (Bion,1965)


O personagem que vivia na claridade constante do céu, desconhecia a existência de outro estado, e após o conflito ético com o Establishment divino, faz a crítica (Kantiana [4]) da situação imposta por Deus, e decide sair para o mundo [5].


Tal como o mítico Ícaro [6], Satã abre suas asas (a mente), mergulha em queda livre rumo ao novo e desconhecido; ao fazê-lo, descobre a transitoriedade da alvorada, a cesura que revela a diferença entre o dia e a noite. É um momento de profunda descoberta que o faz sentir sucessivamente perplexo, admirado, enganado, mutilado e castrado, como se estivesse saindo do útero. Ele abre os olhos de outra forma; desperta de um sonho, enxerga as imagens em ação.


Em sua queda constante, suas divergências e dúvidas em relação ao Paraiso vão aumentando, pois quanto mais cai rumo ao desconhecido, menos ele sabe sobre o mundo e mais cai em si mesmo. Podemos descrever com essa alegoria, aspectos da transformação em “O”. Aquilo que surge pelo movimento do conhecer a si mesmo transitando para o tornar-se quem sempre deveria ter sido (tomando aqui emprestado o subtítulo de Ecce Homo [7] de Nietzsche).


As questões de Satã são as três questões edípicas.


De onde eu vim?


A cesura deste momento de conhecimento fornecido pela alvorada, é inseparável da vivência da incompletude e da incerteza, permitindo que ele veja algumas coisas e outras não (vínculo K), e essa experiência move sua dor e o prazer da descoberta de si próprio. 


Quem sou eu?


Sua reação diante da experiência da alvorada é se dar um nome, como tinham os demais arcanjos, assim sua descoberta move a decisão de se batizar como Lúcifer, ou seja, feito pela luz ou a luz da alvorada. 


Para onde eu vou?


Finalmente, ao chegar à Terra, ele se encontra diante do mar revolto (a turbulência da descoberta de si próprio), e com os olhos arregalados pronuncia a famosa frase de John Milton, com que Bion define o “O”: “o mundo emergindo de águas lôbregas e profundas, conquistado do vazio infinito sem forma”. Voltamos ao início sem fim. Um modelo de análise bem sucedida.


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Ilustração de Gustav Doré


Num aparente movimento contrário ao da alegoria da caverna de Platão, o personagem que vivera somente na claridade, ao libertar-se dos grilhões da fidelidade divina, torna-se herege, um pensador, que mergulha primeiro na escuridão para melhor ver a luz e os contrastes e conhecimentos por ela produzidos. 


Freud, numa carta para Lou Andreas-Salomé [8], relata que executa o mesmo movimento ao investigar o desconhecido. Ele escreve que procurava se cegar artificialmente para melhor ver a luz, abrindo mão dos elementos simbólicos e gratificantes. Trata-se, como apontou Grotstein [9], de percorrer um caminho de intensa escuridão [10] e dali emergir com as consequências da luz lançada por essa investigação.


Os desdobramentos dessa metáfora são imensos. Eles nos sugerem a conveniência de pensar sobre certos acontecimentos na análise que parecem ter uma intensidade sem forma. Bion propõe que podemos pensar neles como subtalâmicos, ou simpáticos, ou parassimpáticos. Por exemplo, o sistema simpático acelera os batimentos cardíacos, dilata os brônquios, aumenta o peristaltismo, dilata a pupila, produz piloereção, aumenta a pressão arterial. O parassimpático estimula o relaxamento, é vaso dilatador, reduz o ritmo cardíaco e a pressão arterial. O subtalâmico relaciona-se com funções motoras relacionadas ao sistema extrapiramidal, ações executadas sem passar pelo pensamento. 


Como colocar essas reações em palavras? Fazendo o que um poeta como William Blake fez ao observar o rubor nas faces de sua esposa após dizer que a amava. Ele escreveu: o sangue falou em suas faces de forma tão eloquente, que até seria consequente, dizer que seu corpo estava a pensar.


O Satã de John Milton, versão do Édipo de Sófocles, era apenas nomeado por sua função, o escolhido para proteger a vanguarda de Deus. Ambos sem nome, Satã e Édipo (uma característica física) ficam no lugar do não-dito, viviam a angústia de não se sentir reconhecidos como sujeitos.


A escolha de agir com autonomia, em busca de respostas, leva a se dar um nome, e pode significar a busca de palavras para “quem sou eu”, ou o processo de conhecer sobre si mesmo em direção ao “tornar-se”. Enfatizo que o processo não se realiza sem a luta por uma vida de criação própria, havendo nesse movimento, descrito por John Milton, mas também por incontáveis autores, o que chamo de uma transcendência através da linguagem (Chuster, 2021, 2022). Certamente que as descrições acima provêm da linguagem poética, e a questão que se desdobra na psicanálise é sempre como traduzi-la em uma linguagem de alcance psicanalítico (Chuster, 2021).


A mente e o trabalho do analista na escolha da sua linguagem


A jornada de um psicanalista se constitui, entre muitas coisas, na escuta e no uso de metáforas. Percebemos no dia a dia como elas podem sofrer as vicissitudes do uso excessivo, sendo um deles decorrente da popularização da psicanálise, e que as leva a agonizar. 


Citando Roger Piper Fowler, Bion (1977) sugere que podemos ressuscitá-las pela justaposição de outra metáfora, cuja inadequação e assimetria, cria um choque desfibrilador, trazendo-a de volta à vida. 


No próprio desenvolvimento de seus textos, Bion usa muitas expressões que seguem essa direção. Por exemplo, se falamos só de elementos, nada muito significativo sugere; mas se juntarmos uma outra palavra como em elementos-alfa, ou elementos-beta, ou função-alfa, ou tela-beta, então nossa atenção revive e somos forçados a pensar mais, a pensar sempre e novamente, sobre o que significam. 


São expressões que podemos chamar de limite. Suas derivadas, como na matemática, apontam para um campo de integração, um campo de aproximações. Tal fato também ocorre na poesia e na arte. O objetivo final dessas expressões é propor o renascimento da psicanálise em cada sessão.


Bion (1977) usa, por exemplo, uma metáfora com animais que fizeram parte da sua infância sertaneja na Índia: o consciente é como um elefante pesadamente correndo atrás de um tigre, o inconsciente, sendo a psicanálise apenas uma listra do tigre. O importante na metáfora, caso se busque um alcance psicanalítico, não é o tigre e o elefante, mas a relação entre os dois; o vínculo, a cesura, a sinapse [11]. Podemos assinalar outros elementos, mas o vínculo sempre é novo em relação à coisa em si, o tigre.


Bion (1977) citando Hans Vaihinger, o filósofo alemão, acadêmico de Kant e autor da obra “A Filosofia do como se”, [12] assinala que Freud o menciona em “ O Futuro de uma Ilusão”. O “como se” pode extrapolar a simples metáfora e virar uma analogia que substitui a realidade bruta da observação. 


O filósofo apresenta o “como se”, como uma analogia que tem como base um sistema de práticas derivadas de ficções teóricas e religiosas que seguem o positivismo idealista. Vaihinger diz que fazendo isso podemos nos comportar ingenuamente “como se” o mundo correspondesse aos nossos modelos. Isso fornece a aceitação de ficções falsas, falsos atalhos, para justificar uma solução racional e pragmática, muitas vezes moral, para problemas que não tem respostas racionais. Eis o tipo de problema complexo que temos de cuidar.


Heisenberg [13] (1996) comenta que acha terrivelmente inadequada essa filosofia do “como se”, pois, leva físicos a dizer que o quantum de luz se comporta como se consistisse num elétron e num pósitron, e em outras vezes como se fosse composto de pares de elétrons e pósitrons. O resultado é uma física do meio-termo, uma física do mais ou menos, quando na realidade podemos e devemos encontrar algo mais preciso, ainda que isso seja apenas uma direção.


Existem pacientes que se situam na área de imprecisão do “mais ou menos”, funcionam numa faixa de onda restrita que vai do menos adequado a ser dito para o mais inadequado do não dito, enquanto exigem precisão do analista. 


O analista, diante disso, pode sentir que não tem outra opção senão funcionar na estreita faixa de onda em que opera o paciente. Esse tipo de paciente avalia se recebeu a interpretação que considera correta ou então não recebeu nada. Em geral, por essa razão, podem aparecer situações em que nada do que é dito pelo analista está bom. Trata-se de uma apologia à imprecisão e ao desespero.


Existem também aqueles pacientes que desejam uma análise mais ou menos, o que com muita frequência tem surgido em demandas de análise uma vez por semana, sem precisão alguma no motivo pela qual desejam isso. Sinal dos tempos, tempos que não conseguem se definir como alguma coisa além de pós qualquer coisa? Tempo de justificativas de falta de tempo e falta de recursos. Tempos de velocidade on-line, que exclui aqueles elementos fundamentais da experiência intuitiva, como o cheiro do movimento, a cor das palavras, o som do silêncio...Elementos que a pré-concepção originária, desenvolvida no mundo pré-natal, nos fornece para podermos enxergar a paisagem do mundo externo (Chuster, 2002, 2014, 2018, 2021.). 


Se vamos observar o mundo, seria adequado ter uma ideia o mais aproximado possível, a metáfora da montanha, que pode ser vista por todos os seus vértices, antes de alguma conclusão, pode ser útil.


O paciente impreciso não gosta e não tem tempo para esse tipo de investigação. É como o coelho de Alice no pais das maravilhas convidado para o chá do chapeleiro louco que nunca acontece. Ele está sempre ansioso e atrasado, mas seu relógio não tem ponteiros. Uma forma de generalização com perda da particularização temporal em ambos personagens.


Tal paciente pode ser uma faceta do ser incoerente, cujas palavras não comunicam o essencial, o que lhe leva a dar muitas voltas sem dizer o que precisa ser dito. Ao se instalar no domínio do não dito exige do analista a tarefa de ser um receptor de amplo espectro. Não é incomum nesses pacientes o uso de frases sem sujeito, ou frases mutiladas. O analista, percebendo esse caminho da inconsequência, ao invés de buscar ser um adivinho ou profeta como Tirésias, pode escolher não se deixar levar pela necessidade de compreensão (memória e desejo) e escolher usar comunicações que seguem o modelo da simetria. A simetria é a base dos receptores de amplo espectro. Construções psicanalíticas podem ser uma comunicação deste tipo.


Bion (1977) refletindo sobre a utilização de construções na psicanálise (a arma polivalente da simetria), diz que é preciso considerar o futuro de uma analogia, uma vez que uma das vicissitudes da analogia (como a já mencionada) pode vir a ser o futuro de uma ilusão. O desdobramento está na responsabilidade do analista para com o futuro da transferência derivado das transformações provocadas por essa construção ou analogia ou alegoria. Temos aqui uma questão ético-estética, traduzida pelo princípio da Incerteza (Chuster, 2014,2018, 2021).


O princípio da Incerteza permite fazer a crítica das analogias. A falta de cuidado em fazer essa crítica pode criar falácias. Por isso é importante considerar que uma analogia é como usar uma rede para pescar (uma analogia), pela qual os buracos da rede conseguem coletar peixes de um determinado tamanho, mas não permitem pescar os que são menores que os buracos da rede, nem os maiores que a rede. Ou seja, o fato de pescarmos peixes de um determinado tamanho não nos permite concluir que no mar não existem peixes menores e nem peixes tão grandes que a rede não consegue sustentar.


A busca de uma precisão para a linguagem psicanalítica utilizando o modelo espectral e sua crítica simultânea aos sistemas simples encontra-se formulada no modelo reflexivo sobre a posteriori de uma sessão; A Grade, campo de funções, uma espécie de rede [14].


Onde se falha é onde se pode obter sucesso: cuidando de um mau negócio


Bion (1977), menciona um paciente com gagueira, e sugere que em termos de comunicação ele tem o seu crescimento detido (como ocorre no funcionamento psicótico), e assim tem maior possibilidade de deterioração, pois não consegue desenvolver interesses além da importância dada às funções fisiológicas (urinar e defecar), e da boca como um objeto que deve ser constantemente gratificado pela língua. 


Essa característica frequente de pacientes que tem a parte psicótica da personalidade muito ativa, é responsável pela tendência a se concentrar nas atividades fisiológicas relatando mau funcionamento persecutório da fisiologia, que é descrita de forma desvinculada de qualquer experiência emocional


Utilizando elementos C, penso na mítica Esfinge privilegiando apenas um vértice, o do corpo de leoa, ou seja, uma opressão fisiológica, uma impossibilidade de sair desse universo senão através da morte.


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Existem diversos tipos de gagueira, ou situações em que a expressão verbal não comunica o essencial em virtude de um tipo inadequado de gratificação com a linguagem, tal como o que parece ser um tipo de ação que é o falar por falar. 


Uma analogia usando elementos C pode ser o exercício musical. Por exemplo, algumas vezes o analista percebe que o paciente está dando voltas, falando sem parar, usando muitas interjeições, e não chega a algum ponto sobre o qual se possa conversar. Mesmo que o analista consiga interpretar, e eles parecem escutar e prestar atenção, no entanto prosseguem falando como se nada tivesse sido dito. Não há transformação.


 Nessas falas podemos notar interjeições que funcionam como ataques sutis ao vínculo. Cada interjeição é como um tartamudeio. Pode ocorrer que ficamos sem entender o que o paciente está dizendo. Perde-se o essencial na comunicação.


De um modo sutil, através da perda do vínculo dentro da comunicação, o paciente criou um sistema onisciente de relação consigo próprio, restringindo o mundo a seu corpo. Como a restrição maior é ao desenvolvimento emocional ela pode criar restrição à psicanalise que é um método de comunicação verbal que exige precisão através das emoções. 


A analogia da Esfinge (sphinx/esfíncter) para o sistema de opressão, pode representar o que Bion (1965) nomeia de um Superego que se prioriza sobre o ego através de exaltação moral, e impede o ego de se desenvolver.


A divergência moral, para esses pacientes torna-se, portanto, um problema muito mais fácil de ser resolvido, lhes traz prazer sensorial no estado de exaltação moral, e quando isso ocorre temos a possibilidade de observar uma transformação em alucinose. O que significa que não se resolve problema algum, sem eliminar o rival, ou o diferente.


As possibilidades interpretativas desse tipo de transformação são da ordem da complexidade e dependem do vínculo intuitivo que se forma entre analista e analisando. Como esse vínculo se desenvolve pela imaginação do analista e da capacidade para sonhar do analisando, ele é constantemente colocado em risco tanto por ataques deliberados do paciente a imaginação do analista, como pela fragilidade essencial do paciente que se torna precipitado nas conclusões, ambos produtores de uma fadiga na atenção do analista.


Uma clínica da transcendência: o humanismo psicanalítico


A transcendência a que me refiro, em poucas palavras, é a busca de libertação do drama voltado para a morte para o pensar na tragédia humana, cuja saída se encontra pelo uso do pensar e da linguagem.


Na obra de Bion (1970) o uso da Language of Achievement (1970), ou, como prefiro atualmente chamá-la, linguagem de alcance psicanalítico, busca produzir uma transcendência estética, que é também uma transcendência ética. Os fundamentos dessa ética encontram-se na afirmativa de Freud de que todo valor ético e pedagógico da análise repousa na ação da sinceridade.


Penso que aqui podemos falar de uma barreira de contato ética, uma espécie de “anjo da guarda” do psicanalista (Chuster, 2020), que tendo como ponto de partida a sinceridade gera as palavras de valor, que geram o caráter (capacidade de acolher e conter a dor do outro). Por sua vez, o caráter gera a coragem (não ser destemido, mas suaviter in modus in fortite in re) que gera compaixão (capacidade de entender sem julgar ou diagnosticar). A compaixão gera respeito à vida, que gera respeito à verdade que, por sua vez, se reflete numa espécie de Onthos ou ponto de partida que é representado pela sinceridade


A linguagem de alcance psicanalítico é uma consequência do uso da técnica, chamada por Keats de capacidade negativa, que é a capacidade de tolerar as incertezas, mistérios, meias-verdades, sem ficar ansioso para compreender e alcançar significado.


Este aspecto é muito significativo, pois estamos falando de um Onthos da linguagem psicanalítica que difere de qualquer outra linguagem, apesar de se aproximar muito da poética. Existe aqui uma especificidade que tem o compromisso ético de atender ao sofrimento psíquico. Trata-se de uma sinceridade psicanalítica cujo objetivo seria_ como na vida em si_ desenvolver a confiança na existência da mente, para que se crie uma espécie de circularidade que pode se expandir ou retrair de acordo com um diâmetro que é a intimidade psíquica.


Os Três Princípios de Vida


A questão que discuto a seguir trata de tentar diferenciar e esclarecer o compromisso ético da estética psicanalítica através do que considero uma importante mudança epistemológica em Bion (1979) quando formula os três princípios de vida como alternativa para as difíceis e ambíguas questões envolvidas nos dois princípios de funcionamento mental formulados por Freud. 


Um artista, como um escritor ou um poeta, pode simplesmente seguir o princípio do prazer e adotar alguns critérios do princípio da realidade, como os que a gramática está ditando, mas nunca em detrimento de sua criação. A liberdade artística e poética não tem outro compromisso.


O psicanalista não pode simplesmente fazer isso, não pode seguir esse modelo do publicitário (Bion, 1965).


Então o que mais o psicanalista pode fazer? 


A resposta que encontrei em Bion são os três princípios de vida (1979), e esse é o vértice que escolhi para continuar dando um panorama do trajeto de sua obra.


Os três princípios propõem relacionar aquilo que o analisando nos apresenta como um reflexo do modo de se relacionar com sua vida, e isso me parece uma questão transcendental e humanística, cujo objetivo é a melhora da qualidade de vida psíquica.


Certamente que os três princípios de vida são um esboço conceitual, uma representação das relações entre experiências de uma vida dedicada à psicanálise. Como todo arcabouço [15] ele pode ser identificado como uma forma de pré-concepção que chega a uma public-ação, tal como ocorre com o mito, ou um sonho, ou um pensamento onírico. Ocorre também com o que foi chamado de pensamentos selvagens, que são pensamentos livres, pensamentos com licença poética, ou liberdade poética, melhor dizendo, de criação.


Uma criação é a capacidade de fazer surgir o que não estava dado e que não pode ser derivado a partir daquilo que já existia. Portanto, uma criação é um movimento que obviamente produz alterações significativas no que se pode chamar de estado inicial.


Por outro vértice, criações podem ser consideradas como exemplos de mudanças catastróficas, portanto, todos os indivíduos estão sujeitos a realizá-las e sofrer com seus efeitos. Essas mudanças são precipitadas por intuições que adquirem um continente de imaginação capaz de satisfazê-las. Ocorre uma subversão do sistema prévio e uma mudança de direção (invariância) na forma de pensar. Esses movimentos podem ser sentidos como uma forma de violência.


Bion (1966,1970), se concentrou naqueles indivíduos cujas mudanças catastróficas atingem uma área muito ampla no corpo social. Bion colocou uma lente de aumento nos fenômenos da intuição, imaginação e criação, através dos indivíduos que são chamados de místicos ou gênios [16]. 


A palavra catástrofe vem do grego katastrophe, que significa “fim súbito, virada de expectativas”, ou mais especificamente, kata quer dizer “para baixo “e strophein conota o ato de “virar”. De modo genérico, trata-se de uma denominação utilizada para expressar uma mudança brusca de padrão em um determinado evento. Virar de cabeça para baixo seria a tradução literal.


Gatilho, evento, padrão são sequências de percepções quando se observa uma mudança catastrófica. Ou seja, toda mudança catastrófica pode ser observada em termos do que acontece num antes e num depois. São as chamadas etapas pré e pós-catastróficas. Entre elas existe uma cesura.


São exemplos de mudanças catastróficas: o interruptor de luz elétrica que faz o escuro ficar claro ou quando se apaga a luz e o ambiente fica às escuras, ambos são catástrofes. Logo, é basicamente uma mudança de estado e objetivos que a caracteriza como catastrófica. 


Os estados da água são mudanças catastróficas e correspondem a quatro possibilidades. Todavia, se incluirmos o campo e os efeitos das mudanças temos seis tipos de transformações. Assim, temos uma transformação no estabelecimento de um campo específico, outra que são as consequências externas ao campo, e no campo temos quatro tipos de transformações em seu no interior.


Na psicanálise escolhemos observar as mudanças catastróficas através da imagem de um triângulo representada pela teoria edípica, ou seja, através da experiência emocional. O triângulo pode sofrer mudança de vértice no mesmo quadrante (transformação em K), pode ser transportado para outro quadrante mantendo as mesmas características (transformação em movimento rígido), pode ser por hipérbole ampliado ou reduzido num quadrante inferior (transformação projetiva) ou ser invertido num quadrante oposto em diagonal (transformação em alucinose).


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A vantagem de trabalharmos com uma teoria da catástrofe [17] em psicanálise se concentra nas observações de transformações que podemos fazer numa espécie de alinhamento, ou simetria [18]. Uma espiral de pensamento é criada: teoria do pensar, expansão do inconsciente através da teoria das funções, campo de funções para análise funcional, transformações, e de volta ás funções.


Por exemplo, a personalidade psicótica necessita de domínio sádico da experiência sensorial. A Esfinge, usada como categoria C, predomina fazendo uma pergunta para obter respostas erradas da qual se alimenta, isso justifica o assassinato do vínculo: podemos chamar isso de superego assassino.


Se aplicamos a metáfora “sertaneja” do tigre e do elefante podemos descrever uma relação predador/presa, na qual o analista pode se sentir no papel do elefante pesado, lento e inadequado, diante de uma paciente muito rápida, que age ao invés de pensar [19]. Pacientes que vem para a análise num estado de busca de sobrevivência podem solicitar esse modelo, que os segue até que consigam ascender a uma possibilidade de conseguir viver e desenvolver a vida.


A busca de elementos simétricos onipotência/desamparo na história permite a escolha de quaisquer elementos para vértice, sem alterar o valor da função analítica. 


A simetria onipotência/desamparo


Bion (1977) chama atenção para a deficiência dos modelos psicanalíticos existentes para lidar com a simetria onipotência/desamparo. Essa simetria possui muitos elementos conjugados, que podem não ser reconhecidos, ou reconhecidos apenas isoladamente quando o conjunto é essencial.


Um paciente que traz o sentimento de desamparo pode acusar o analista de estar causando problemas e tornando as coisas mais difíceis para ele. Na acusação existe uma atribuição de onipotência ao analista, que certamente não pode concordar com isso. Se olharmos da perspectiva inversa, o paciente pode através da onipotência estar tentando forçar o analista a ser um tipo de pessoa que simplesmente se adapte a ele, ficando desamparado [20]. O trecho da Eneida, a morte de Palinurus (Bion, 1977) pode ser aplicado nessa situação [21]. 


Os mitos de Éden e Babel podem ser utilizados como modelos para a simetria onipotência/desamparo e reforçados pelo enigma da Esfinge, e assim a deficiência da psicanálise nessa área pode ser diminuída.


Bion afirma que a “moralidade” da divindade pode ser expandida por conjecturas imaginativas usando os pontos de vista do capítulo 2 do Baghavad Gita


Neste capítulo existem 72 argumentos a ser considerados, que se resumem na tentativa de o Deus Krishna convencer Arjuna sobre o valor da Guerra e o triunfo encontrado no desprezo aos medos e sentimentos. Arjuna recusa essas argumentações onipotentes e faz opção pelos sentimentos e pelo respeito à vida. Tantas vezes o respeito à vida e o respeito à verdade significou abrir mão de deuses e suas vontades [22]. Tantas vezes isso significou que os deuses como Krishna desaparecem, ou que o Deus fica para trás como na queda de Satã, ou como Zaratustra afirma, para resgatar sua condição humana o Deus deve estar morto.


Os modelos que utilizam de mitos ajudam o psicanalista a construir uma ponte sobre o hiato entre a teoria da continência (relação continente/conteúdo) e o material que se manifesta na experiência analítica [23]. Ser continente não significa ser benevolente. Benevolência atrai a voracidade que atrai parasitismo. Não se pode esperar gratidão quando a inveja é dominante e causa inibições de tudo que promove crescimento. Tem sempre aquele paciente que esperava mais...que gostaria de mais...e não está satisfeito com o momento, que somente é parte do seguinte onde exige mais até se desesperar com ódio.


A escuta do analista pode ser tomada como o principal pressuposto que estabelece em suas interpretações a compreensão do que foi dito pelo analisando. A escuta deve estar inteiramente relacionada ao complexo de Édipo, ou mais especificamente à natureza tridimensional da mente humana.

Uma teoria edípica fundamental se traduz pela teoria da pré-concepção ao estabelecer que a mente humana tem três dimensões: tempo, espaço e existência. A função tempo e a função espaço é para ser contrastada com a profundidade da existência promovida pela experiência emocional.

                   

              

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Transformações e complexidade


Na construção da linguagem de alcance psicanalítico, podemos usar questões derivadas da matemática e da arte, para pensar nas transformações do campo em observação do objeto acima. Esse diálogo é um exemplo de complexidade no pensar psicanalítico.


A vantagem de uma teoria das transformações é permitir aproximações cada vez maiores ao problema real a ser interpretado. Sabemos que existem pacientes que parecem não resolver nunca seus problemas, mas não é que não resolvam, eles simplesmente não os atingem (Bion, 1965).


 A teoria das transformações oferece a observação de um ponto de Indecidibilidade da origem dos fenômenos. Este ponto é “O”, um ponto do não saber a quem pertence. Se pudermos vivenciar “O” com capacidade negativa, tolerar o tempo que for necessário o desconhecido, então ficaremos mais livres para não tomar decisões interpretativas que sempre atribuem o discurso imediato ao passado ou ao aspecto interno do paciente. Não que essas intepretações não façam parte do processo. Elas fazem em algum ponto. Mas precisamos de mais precisão poiética.


Podemos resumir essas afirmativas pela seguinte afirmativa de Bion: “Em qualquer sessão ocorre evolução. Algo evolve a partir da escuridão e da ausência de forma. Essa evolução pode ter uma semelhança superficial com memória, mas assim que tenha sido experimentada, jamais poderá ser confundida com memória. Compartilha com os sonhos a qualidade de estar totalmente presente e subitamente ausente. É essa evolução que o psicanalista precisa estar pronto para interpretar. ” (Cogitações,2000, pg. 393)


A tolerância a “O” permite resgatar a intuição, a imaginação, e, sobretudo, a criação interpretativa que vai mais além do que se observa no que é chamado classicamente de transferência.


Para dar uma ideia do que significa uma transformação, podemos usar o modelo de construção de um quadro a partir de uma paisagem que tem uma fonte, um caminho, e uma árvore. Em primeiro lugar, o percebido é representado num pedaço de papel por um esboço singelo feito por retas paralelas que convergem para uma elipse e algumas que parecem divergir.


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O esboço de linhas gerais, invariantes, colorido pela imaginação mostram objetos factualmente distintos, a árvore, a fonte, o caminho, o barco e o desenho geral, que não existiria sem os detalhes, feitos pela transformação [24].


No processo psicanalítico observamos uma personalidade que escolheu, em algum momento, consciente ou inconscientemente, uma visão particular para observar e relatar sobre seu mundo. Essa escolha sempre envolve uma inibição daquilo que o paciente pode não desejar ver. Perde-se a simetria.


O resgate dessa simetria pode ser aperfeiçoado se utilizarmos o mito de Édipo para observar os sons antes de nos dedicarmos aos significados das palavras escolhidas ou excluídas. Podemos também escolher outro sentido ou sentidos, como o olfato, ou movimento, fatos que o on line não permite.


Na caminhada de Édipo existe uma alternância entre passagens de gritaria e passagens com tentativa de silenciamento. Temos elevação da voz e diminuição da voz, aspereza e suavidade. Isso possibilita, meio caminho andado em direção a uma interpretação do que está ocorrendo. O Oráculo grita com Édipo diante de uma pergunta, mas Tirésias tenta silenciá-lo com argumentos, Laio e Édipo gritam e discutem na encruzilhada com argumentos opostos, a Esfinge pergunta com uma voz suave de ninar bebês tentando não ter respostas, Édipo grita se lamentando sobre a verdade, e depois o silêncio do exílio.


Como exercício de imaginação sugiro uma Grade para o que foi descrito acima, usando a percepção de fundo, do som, da música como síntese não conceitual, ou poderia agregar também o cheiro da palavra, a cor do movimento, o gosto da presença, o ruído da pele. São elementos que o on line passa ao largo, ou apenas atinge pontos coincidentes e complexos na área do conflito. Mas não atinge o atravessar do problema em pontos conjugados e complexos.


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Elevação da voz e diminuição da voz, onda de alta frequência e baixa frequência, aspereza e suavidade, são como versões simétricas da comunicação inerentes a cada uma das questões edípicas, que acima aparecem como subdivisões temporais.

     

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Se pudéssemos agir como um músico utilizaríamos certas regras conhecidas que levariam a uma razoável compreensão destes sons discrepantes, ao coloca-los numa pauta musical. Mas não somos músicos [25].


Então que tipo de regras o analista pode utilizar para ver e demonstrar para outros, a verdade, que geralmente é feia e assustadora para quem não a tem revelada? Certamente, que em termos simétricos, a beleza e a beleza assustadora são frequentemente comparados com a verdade para quem se sente em liberdade como sua revelação. Pelo menos, era o que o poeta Keats pensava: 


Beleza é verdade, verdade é beleza, isto é tudoo que conheceis sobre a Terra, e é tudo o que precisais conhecer.

Apesar das várias críticas argumentando que essas linhas são inocentes e que até estragam o poema (como escreveu T. S. Eliot), a fama delas ultrapassa os comentários negativos. Recentemente, o matemático Ian Stewart [26], usou as palavras poéticas de Keats para dar nome ao seu livro, onde ele conta a história da busca por simetria (que ele equaciona com beleza) na matemática e na física teórica.


Mas qual a relação da matemática com a beleza? E o que a psicanálise pode apreender dessa complexidade?


Matemáticos e físicos atribuem beleza à teoremas e teorias, criando uma estética da "verdade". Os mais belos são aqueles que conseguem explicar muito em pouco tempo e espaço.


Quando possível, os teoremas e teorias mais belos são também os mais simples; dadas duas ou mais explicações para o mesmo fenômeno, vence a mais simples. Esse critério é conhecido como a "navalha de Ockham", atribuído a William de Ockham, um teólogo inglês do século 14. Podemos usar tal instrumento na psicanálise? Ou já o utilizamos quando falamos de função alfa?


Einstein, dentre outros, era um defensor da beleza como critério de verdade em teorias científicas: uma teoria tem que ser bela para estar correta. E, sem dúvida, muitas dela são, ao menos de acordo com critérios de elegância e simplicidade na matemática.


Para os que creem na matemática como linguagem universal, essa estética leva à existência de uma única verdade. Isso soa como um monoteísmo judaico-cristão, uma espécie de intoxicação religiosa, mesmo que sutil e metafórica, nas ciências. 


Mas felizmente existem aqueles que não acreditam muito na ciência tal como ela está formulada no presente. Acreditam no futuro dela, como Freud, por isso Bion, que nos legou o caminho para esse entendimento, comenta que é necessário um gênio, como Freud, para demonstrar a realidade do inconsciente e seus recursos emocionais para que as pessoas com menor capacidade messiânica, pudessem entender e conseguir ligar uma luz em suas vidas.


Freud, foi bastante generoso, ao demonstrar a realidade dos recursos emocionais para as pessoas que não possuem essa capacidade, pudessem apesar de suas limitações, receber comunicações que demonstram e disponibilizam tais recursos. Essa atividade é a psicanálise em expansão. 


Termino aqui com uma frase de Clarice Lispector:

Um dos gestos mais belos e generosos do homem, andando vagarosamente pelo campo lavrado, é o de lançar na terra as sementes.

NOTAS


1 Membro Efetivo e Didata da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro e do Newport Psychoanalytical Institute, Califórnia. Membro honorário do Instituto W.Bion, Porto Alegre.


2 Todo modelo espectral implica na questão da Infinitude. Portanto, guarda relações com a epistemologia dos conjuntos infinitos de Cantor, com os modelos probabilísticos e os teoremas de Indecidibilidade de Kurt Gödell, e com o Princípio da Incerteza de Werner Heisenberg. Na ciência temos diversos desdobramentos dessas ideias, tais como a teoria dos fractais, a teoria do Caos, e finalmente a Teoria da Complexidade de Edgar Morin.


3  Milton, J. Paraiso Perdido, ilustrações de Gustav Doré, tradução de Daniel Jonas, editora 34, 2016.


4 Crítica ao método, descentralização do sujeito, nomear como oposição ao narcisismo, descoberta do infinito.


5 SALVE, ó luz, primogênita do Empíreo,

Ou coeterno fulgor do eterno Nume!

Como te hei de nomear sem que te ofenda?

É Deus a luz, — e, em luz inacessível

Tendo estado por toda a Eternidade,

Esteve em ti, emanação brilhante

Da brilhante incriada essência pura


6 Dédalo e Ícaro, historia para um labirinto; editora Anaya, 1998


7 Nietzsche, F. Ecce Homo, tradução Paulo Cesar de Souza, Companhia de Bolso, 2008


8 Freud and Lou Andreas-Salomé, Letters, Editor Ernst Pfeifer, tradução de William Robson-Scott, W.W.Norton Company, 1985.


9 Grotstein, J. A Beam of intense darkness: Wilfred Bion’s legacy to psychoanalysis, Routledge, 2007.


10 Existe a expressão em inglês que utiliza a palavra “beam” como caminho, uma vereda.


11 Caso contrário teremos desgaste físico para um lado e stress desnecessário para o outro.


12 Vaihinger, H., trad. Johannes Kretschmer, A Filosofia do Como se: Sistema de Ficções Teóricas, Práticas e Religiosas da Humanidade, na base do Positivismo Idealista, Argos, 2011.


13 Heisenberg, W., A parte e o Todo: encontros e conversas sobre física e filosofia, Contraponto, 1996.


14 Os elementos C (imaginação, sonhos, mitos, pensamentos oníricos) fornecem uma âncora psicanalítica na expectativa de prevenir a ida para uma direção oposta aos objetivos da análise, que pode ser traduzida pelo aparecimento de elementos de uma Grade negativa dominante (Chuster e Conte, 2002, Chuster, 2018). Os elementos de uma Grade negativa estão sempre presentes, o que faz com que os resultados de uma sessão, em geral, sejam pequenos comparados ao esforço que é necessário ao trabalho do analista. O que pode ser preventivo deste mau resultado é a importância dada ao vínculo. Essa importância define se o caminho tomado será o do crescimento ou da decadência. Observar o vínculo é sinônimo de experiência emocional.

O modelo da Encruzilhada no mito de Édipo faz um confronto entre crescimento e deterioração, o que implica em estabelecermos uma ponte entre dois elementos em contato, ou entre duas funções distintas, através das quais variáveis e invariantes são levadas a uma integração. O conceito de simetria aplicado pode criar um eixo central para duas retas paralelas, tal como são os universos do analista e do analisando. E como de fato eles se encontram somente no infinito, deve ser aí que vamos concentrar os esforços no que podemos chamar de a sessão de amanhã (Bion, 1978).


15 No entanto, trata-se também de um arcabouço formulado no auge da obra, ou seja, pouco antes de seu falecimento. Para comentar esse fato, que acredito ocorra somente com os chamados gênios, cito uma fala de Oscar Niemeyer: “Entendo a vida como uma rampa que eu crio, uma curva ascendente com momentos mais íngremes e momentos mais suaves, daí advém minha arquitetura. Por isso, estou sempre subindo, e no momento da morte pretendo estar no auge da subida, e não lá embaixo como se propagandeia sobre o envelhecimento”.


16 Seguindo essa linha de investigação (1965, 1970), através da citação de Nietzsche_ sobre a função da nação ser a de produzir um gênio_ as criações destes indivíduos podem ser chamadas de social-históricas, pois atuam como um divisor de águas, estabelecendo um antes e um depois, e estão conectadas a uma capacidade intuitiva fora do comum e, consequentemente, a uma capacidade imaginativa igualmente fora do comum, sem a qual a intuição nada adiantaria.

O alcance filosófico desta constatação é imenso, pois significa que existe pelo menos um tipo de ser que cria alteridade, ou que sendo fonte de alteridade pode alterar a si mesmo.

Segundo o dicionário Aurélio, alteridade significa “qualidade do outro ou do que é diferente” e, filosoficamente, “caráter diferente, metafisicamente”. Em resumo, podemos dizer que a alteridade é o ato de perceber a diferença entre eu e outro e que o “eu” deve conviver com outros.


17 René Thom, matemático francês, criou um modo qualitativo matemático que denominou inicialmente de modelos da morfogênese na designação preferencial, e posteriormente chamou de “Teoria da Catástrofe” (1972). 


18  Essa imagem pode ser descrita pelo teorema de Desargues (Bion, 1975), como já assinalei anteriormente.


19 Outro exemplo pode ser obtido do hiato entre a teoria e o paciente que não consegue usar o divã. O hiato pode ser muito amplo para o que na aparência é julgado relevante, principalmente quando o apego à teoria é muito ativo e tóxico. Esse apego fica muito mais grave quando é por fidelidade institucional. 


20 Trata-se de uma demanda do paciente por um acordo de mostrar na análise somente o tipo de material que não o incomoda. Ou, em outras palavras, o paciente pode estar estabelecendo a condicionalidade de vir para a análise somente se puder ter apenas a análise que ele deseja. Infelizmente, o resultado, será somente ter um “analista” despreparado para quem pedir ajuda. Sem ajuda adequada o paciente pode ser atirado ao mar pelo Deus Somnus, e se afogar na vida após ter sido intoxicado com alguma droga social.


21 A possibilidade de lidar com esse material é interpretar com simetria, podemos dizer algo dialógico como “você deseja ter uma análise que imagina ser uma análise que lhe atende, mas o resultado obtido parece estar sendo assustador e desagradável”. Numa supervisão Bion diz isso através do que para muitos é uma frase chocante: ” infelizmente essa é uma fraqueza da análise, os analisandos só podem obter o tipo de análise que merecem. Não se pode forçar ninguém a ser ajudado e a aprender com a experiência”.


22 Algumas vezes, o analista se depara com um paciente que o trata como se fosse uma mobília ou um computador. O analista não tem vida própria e nem contas a pagar. A pandemia trouxe um aumento de situações deste tipo com o processo on line. Alguns pacientes mostraram que não tem noção do que seja um ser humano. Por essa razão não tem consciência de que fazem coisas muito cruéis. Se estivessem conscientes perceberiam que certas atitudes causam sofrimento. Não há desumanidade que não venha acompanhada de onipotência sustentada por algum Deus. Se esse Deus não se retira não podemos resgatar o humano.


23 Presume-se, de acordo com Bion (1977) que os psicanalistas consideram que as sofisticadas formulações teóricas (F) e o modelo (C) são transformações legítimas de uma para outra. (F) ↔ (C). Na exatidão desta hipótese depende a legitimidade da psicanálise. Em outras palavras, o entendimento do fundamento da psicanálise que é o complexo de Édipo permite avaliar um psicanalista em dois pontos fundamentais: a sua capacidade e sensibilidade de resgatar a intuição e transformá-la em interpretação.


24 Mas, ao contrário do que a singeleza da imagem pode sugerir de facilidade, devemos estar preparados para situações muito mais complexas como, no exemplo de Bion, indagando sobre as invariantes entre as fontes de Roma e as partituras musicais de Respighi?

Quem estuda música sabe que Ottorino Respighi (1879-1936) foi um compositor, musicólogo, pianista e violinista italiano, que criou uma Trilogia Romana, que são poemas sinfônicos, sendo um deles As Fontes de Roma. Sua obra foi popularizada por Arturo Toscanini, um dos maiores maestros de todos os tempos. Todavia, quem não tem conhecimento desses dados precisa utilizar de uma forte dose de imaginação para perceber as invariantes comuns. Por exemplo, o som das fontes, o ritmo que existe nesses sons, as sensações térmicas ao observar e escutar, poderia ser um bom começo. Mas, mesmo assim, não será que isso requer a experiência de ter chegado perto de uma fonte? 


25 Os símbolos das notas escutadas podem ser escritos sobre cada uma das cinco linhas ou dentro dos quatro espaços da pauta. A altura das notas depende desta posição.

Se precisarmos representar notas mais graves ou agudas do que as nove notas representáveis nas linhas ou espaços do pentagrama, utilizam-se linhas e espaços suplementares abaixo ou acima da pauta:

Para definir qual nota ocupa cada linha ou espaço e a faixa das notas representadas no pentagrama, são utilizadas as claves, que permitem adaptar a escrita para as diferentes vozes ou instrumentos musicais.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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