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Raízes literárias na obra de Bion: O Romantismo Inglês - uma ode à Imaginação

  • achusterblog
  • há 6 dias
  • 16 min de leitura

Arnaldo Chuster


Conta uma antiga anedota que um esquálido indivíduo foi internado num hospital psiquiátrico porque afirmava ser o Visconde de Sabugosa, ou seja, uma espiga de milho aristocrática que tem respostas para tudo. Durante a internação, toma altas doses de medicação anti-psicótica, sendo entrevistado diariamente por seu médico assistente, que lhe questiona a irrealidade da afirmativa. Após uns 20 dias, começa a dizer que entende que não é uma espiga de milho. Finalmente, passada mais uma semana, diz que sabe nunca ter sido o Visconde de Sabugosa, entende que este é um personagem de Monteiro Lobato, logicamente da sua infância traumática. Recebe alta. 


Entretanto, ao sair do hospital, num terreno baldio vizinho, encontra galinhas ciscando que o “encaram”. Aterrorizado, volta correndo para o hospital. O psiquiatra é chamado com urgência para atendê-lo. Na conversa reforça que o paciente já está curado, não tem motivos para voltar, pois está consciente de que não é uma espiga de milho. O paciente responde com indignação: Sim, eu sei que não sou milho, mas a galinha sabe disso?


A questão aqui não é o que o sujeito sabe, pouco importam as explicações e o seu conhecimento acumulado; ele nada pode fazer contra o fato de que em algum lugar há um saber absoluto, a certeza da posse de uma verdade incontestável. Podemos chamar isso de arrogância, uma expressão que traduz o desastre mental causado pela ativa predominância da parte psicótica da personalidade (Bion, 1967). Essa parte se associa com estupidez (crueldade do objeto) e curiosidade mórbida (indiferença pela vida e fascinação pela morte)


Tal tríade fenomênica decreta a experiência emocional negativa. A parte psicótica não pode tolerar que exista uma verdade incognoscível e inacessível que faz da vida uma incerteza no seio das liberdades. Para a parte psicótica a verdade é conhecida, está estabelecida e fixa; pertence a alguém, em geral, uma minoria aristocrática.


A psicanálise, para lidar com fenômenos dessa natureza, não pode ser um sistema fechado. Ela é obrigada a se abrir constantemente e a avançar de modo experiencial, pois deve permanentemente levar em conta observações obtidas de sua prática.


Uma das grandes contribuições de Bion à psicanálise foram as teorias que a traduzem como sistemas abertos, complexos, como são os diversos modelos espectrais tais como o espectro narcisismo-social-ismo presente no objeto psicanalítico, a experiência emocional, a cesura, e todas as implicações que tais ideias trazem ao pensar psicanalítico, alterando fundamentos básicos importantes como a epistemologia, a lógica, a ontologia, a metodologia e a prática. 


O simples fato de haver pacientes que tem dificuldade para exprimir o que sentem e até sofrer sua dor, tal como o paciente da anedota, que nada pode fazer contra a certeza torturante do saber arrogante, ou pensa que nada pode fazer, incita ou deveria incitar o psicanalista a se voltar constantemente para os fundamentos da psicanálise para retomá-los e atualizá-los.


A psicanálise diversamente de outras disciplinas está inevitavelmente aberta, por ser ininterruptamente submetida à prova da verdade, que é a escuta daquele que traz e conta sua dor psíquica, tantas vezes proveniente de estados mentais muito primitivos, chegando até mesmo a origens em níveis pré-natais. Mais ainda, a psicanálise vive o constante desafio de colocar em palavras a experiência percebida e, isso precisa ser feito de uma forma que alcance o paciente. A psicanálise requer a palavra precisa para o momento da sessão, e para tal a poesia fornece um modelo exemplar. Isso não significa que tenha que ser um poeta, mas certamente se torna um melhor analista ao se permitir encantar com a poesia.


Para quem foi a fundo na experiência de questionar os fundamentos da psicanálise para a escuta analítica, com intuito de escutar essas situações muito primitivas, como foi o caso de W.R. Bion, este encantamento com a e com a experiência literária muito ajudou, o que de forma muito feliz a Sociedade Psicanalítica de Ribeirão Preto chamou de matrizes literárias, e dedicou-se ao seu estudo em alguns encontros. 


Essa matriz é sobretudo uma matriz amorosa, que evolui até alcançar uma linguagem psicanaliticamente bem sucedida (Language of Achievement).


Coube a mim a parte relativa aos poetas românticos ingleses. Apesar de discordar dessa designação, pois não acho que existam idealizações românticas e elementos inatingíveis em seus poemas, mas predominantemente livre expressão dos sentimentos, vou tentar expandir psicanaliticamente alguns vértices do assunto relacionando-os com a obra de W.R.Bion, e também a alguns pontos pessoais.


II


“ O sangue falou em suas faces, de forma tão eloquente, que é consequente dizer, foi como se o seu corpo pensasse”.

Estas são palavras de John Donne, num singelo poema dedicado à esposa no seu segundo aniversário de casamento. Conta a história que ele teria dito que a amava e ela se enrubesceu com a declaração. 


No momento imediato à declaração de amor, tudo se passa como se ela, ao enrubescer, confessasse que escondia alguma coisa, apenas revelada pela cor que o sangue empresta a suas faces. Quem capta esse colorido e coloca em palavras é o poeta.


Mas o que ela revelava? Quando as faces se coram podemos especular que é revelado ao observador que ela escondia uma paixão recíproca e forte demais para ser processada. No entanto, ninguém sabe o porquê de tal reação. A priori, não deveria ser nenhuma surpresa para a esposa de um poeta esperar senão palavras significativas e fortes. O fato em evidência é o não saber que nos é dado sempre a vivenciar e observar.


W.R.Bion expressou que essa poesia de Donne é a melhor forma de definir o que chamou de elementos beta. Ou seja, aquilo que poderia vir a ser um pensamento. Este, por força de uma emoção não processada, se transformou não em palavras, mas em corpo falante de algo enigmático. Podemos dizer que o elemento-beta alude à percepção de uma generalização, sem acesso à precisão afetiva e ao simbólico. Todavia, o poeta transformou o que observou em elementos-alfa, e depois em pensamentos e palavras, que adquiriram eternidade poética.


A frase ''conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses'', inscrita à entrada do santuário de Delfos, na Grécia antiga, difundida por Sócrates, circula até hoje, e tem eternidade. Parafraseando, sugiro: conhece a psicanálise em Bion e conhecerás não só o renascimento da técnica socrática, mas como nutri-la com a poesia.


III


Com relativa frequência um paciente me diz que a vida que leva, bem como a que vê ser levada pelos outros, não tem verdade alguma. Trata-se apenas de uma fraude, uma comédia sem graça, uma sequência de cenas assistida por espectadores melancólicos e iludidos. Ele estende isso a toda cultura e a toda humanidade. Ao mesmo tempo, de forma incoerente, ele se mostra um indivíduo fascinado por códigos sociais que lhe dizem rigidamente o que é certo e o errado, não no sentido do senso comum, mas no sentido de um espelho. Atualmente convencionou-se chamar isso de politicamente correto, uma aristocracia moral dos tempos atuais.


Ele relata que fez duas análises anteriores, e me questiona irritado que não estou dando interpretações transferenciais e, o que é pior, fazendo perguntas para esclarecer o que ele está falando. Ora, isso é conversinha, diz ele. Será que eu tenho que te ensinar o que é a psicanálise? Pois você não sabe o que é uma psicanálise correta


Digo que ainda bem que não sei mesmo da forma como ele sabe. Sem essa diferença não poderíamos fazer nada além de concordar com ele e fingir quem não sou, e isso é incompatível com ser sincero. 


Para quem me perguntar em outro contexto, o que é a psicanálise, posso dizer que até agora me parece uma forma de comunicação verbal sincera a serviço de uma ciência da observação dos relacionamentos humanos pela ótica do inconsciente. O que não é efetivamente um saber, mas a busca.


Percebo que o politicamente correto lhe serve de bíblia, daí que todos lhe entediam e aborrecem, seus filhos são chatos, e sua esposa nada tem a dizer. 


Digo que talvez sua companhia ideal sejam os mortos. Eles nada incomodam, pois nada podem lhe perguntar ou dizer. Mas a “conversinha” comigo lhe incomoda. Queixa-se dela e com isso mostra a incoerência de continuar vindo fazer análise com alguém que lhe causa problemas ao invés de resolver. Afirmativa, que quando ele faz, não concordo de forma alguma. Não é que o problema não se resolva, simplesmente não o atinge.


Para quem ainda não percebeu o diretor de cena do paciente, usando o seu mito pessoal, é o superego assassino.


Uma frase de Donne me veio como associação ao estado acima:


“A morte de cada homem me diminui, porque sou parte da humanidade. Portanto, nunca procure saber por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.

Essa frase, que ficou ainda mais famosa ao ser usada por Hemingway, no título do seu romance sobre a guerra civil espanhola, pode ser ilustrativa do quão penoso é para o paciente tornar-se responsável em tratar a infelicidade de sua vida, ou seja, tomar a iniciativa ao invés de ficar na lutando e fugindo da própria vida, se incomodando em controlar o pensamento dos outros. 


Para esse paciente nada está bom enquanto for vítima de uma comédia que leva ao ódio e ao desespero, e esses sentimentos à transformação em alucinose: ele não sai da cena na qual tenta sempre provar que ajudá-lo é inútil. A parte arrogante é superior...vive de certezas... vive numa lógica montada sobre uma falsa premissa de que as ações são melhores do que as palavras.


Uma vez que ele faz alusão ao teatro, chamando tudo de comédia, posso sugerir um pensar utilizando as metáforas para colocar algumas questões difíceis e incômodas. 


O que fazem os atores? Eles são falsos porque falam com palavras de um autor? Mentem porque encenam uma ficção? Mas como conseguem fazer isso naturalmente a ponto de dar uma impressão de realidade? Eles passam algo verdadeiro que cativa a audiência, mas isso quer dizer que conhecem a verdade? Certamente que não. O que então faz com que a cena teatral tenha o poder de despertar os sujeitos que dormem na sua vida de vigília, e que não sonham quando estão dormindo?


A questão parece ser não o que é a verdade, pois essa não pode ser atingida, e sim onde está a verdade?


Disse Keats: 


'Beleza é verdade, verdade é beleza' - isto é tudo o que conheceis sobre a Terra, e é tudo o que precisais conhecer.

Se um paciente nos procura e diz que sofre por ser espectador de sua vida, que vê a vida passar sobre uma espécie de palco onde ele não sobe, e deste modo se depara com uma série de impossibilidades, aí existem simetrias que podem ser desveladas e desvendadas: uma simetria entre o ato e o olhar, o ator e o espectador, de onde se esboça um elemento invariante: o espectador excluído_ a origem da dor. A teoria das transformações em Bion (1965) é um ótimo instrumento para trabalhar com essas questões. Ela descreve progressivas exclusões de vínculos da experiência emocional.


O politicamente correto começa na tentativa de exclusão do vínculo H (ódio), mas isso afeta o vínculo L (Amor), e consequentemente chegamos ao menos K (mentira, falsidades, confusão, fariasianismo). Em outras palavras, ele exclui o ódio e o desespero, age com hipocrisia, essa transforma o amor em indiferença e puritanismo, e, finalmente, recusa qualquer saber que não seja o que já possui.


Para a psicanálise podemos dizer que o espectador excluído nos coloca na cena do Édipo, um lugar nascido de uma cesura entre espectadores e atores  onde se cria um vazio que é a cena  em Sófocles ela fala de uma cesura entre o ator e o coro. O coro está sempre presente como uma conjunção constante (Bion, 1962b, 1965) simbolizando a cesura. Se essa separação não é reconhecida e respeitada, a cena é obscena. A obscenidade tem várias possibilidades.


O que faz com a análise não caia na obscenidade da conversa comum é sempre a inclusão do terceiro na sessão, sendo muito significativo descrever, como fez Bion: para que haja uma análise é preciso três personagens: o paciente que fala, o analista que escuta, e o paciente que escuta aquilo que o analista falou sobe o que ele disse. O paciente que fala e escuta é sempre mais importante que o analista que fala. O analista que escuta é como o coro que fica no fundo da cena.


O obsceno é tudo que nos coloca aquém do caminho de sermos quem somos. O obsceno é nos dotarmos de lógicas que sustentem a exclusão de quem somos e podemos ser.


Temos a lógica do saber passado que exclui o presente; temos a lógica do presente que exclui o que deve ser dito, temos a lógica do sem tempo que exclui qualquer conhecimento novo e o substitui por mentiras.


 Para transcender o obsceno precisamos do poético, pelo qual um novo caminho pode ser aberto, indo mais além para experimentar o tornar-se quem verdadeiramente somos, é uma mudança catastrófica (Bion, 1966) surgida a partir de uma descrição interrogante que nos leva a despertar. Por isso usamos construções e metáforas exemplarmente fornecidas pela linguagem poética.


IV


A função do modelo da poesia na psicanálise, é fornecer um limiar poiético. Esse limiar pode ser descrito, em primeiro lugar, como função restauradora da intuição analítica, e nos convida a renovar o pensamento (evolução) guiado pela afirmativa Kantiana: toda intuição sem conceito é cega, todo conceito sem intuição é vazio


A primeira pergunta sempre desafia:  de que forma juntá-los?


Intuição e conceito são vinculados num espaço-tempo de resultados incertos. Neste espaço de incerteza podemos encontrar uma importante contribuição de Bion. Ele foi além de Kant quando deixa implícito que intuição e conceito são ligados por meio da imaginação (Chuster, 2020, 2021).  Penso que essa percepção foi dada pela experiência de Bion com os poetas românticos ingleses, e sobre essa conjectura desenvolverei a seguir algumas ideias.


William Blake (1757-1827), sobretudo, faz com que a ênfase recaia fortemente na imaginação como um poder que chega a comunicar e a partilhar com o poder sagrado da criação: Esse compartilhamento cria o característico entusiasmo dos seus versos. Como todos provavelmente devem saber a palavra entusiasmo significa ter Deus dentro de si.


O conceito de ‘imaginação’ é, portanto, central em Blake (que foi além de poeta, pintor e visionário) e embora por ele apresentado em termos relativamente simples, proporciona uma infinidade de refinamentos semânticos. 


Na prática, ele descobre uma fusão ontológica entre ‘imaginação’ como poder interno e ‘inspiração’ como poder externo; o primeiro contribuindo para a expansão e intensificação da visão induzida por uma força e um objeto, a saber, mente e natureza, e essa descoberta foi influente na formulação da ideia da imaginação poética como reconciliadora de qualidades contrárias, estabelecida por Coleridge. 


No pensamento de Blake, a imaginação fica alinhada como a faculdade mental mais importante, tanto a nível imanente como transcendente (humano e divino); mas o seu sentido último reside na relação interdependente que ela mantém com a inspiração


Mais uma vez ressalto que conhecemos esse divino dentro de nós como entusiasmo e encantamento. Deste modo, a principal função da imaginação na vida real seria a de estabelecer uma ligação empática entre o indivíduo e o cosmos; segundo Blake, só fazendo uso da prosopopeia ou personificação é que a imaginação conseguiria evitar as representações estereotipadas e a superficialidade emocional. 


Nas suas “Annotations to Wordsworth’s Poems”, Blake diz que a imaginação é convertida no sumário do processo estético, na força de regulação capaz de formar uma obra de arte de acordo com as convicções do artista e para além dos limites impostos pelos agentes inspiradores: ''One Power alone makes a Poet – Imagination The Divine Vision”. A imaginação é responsável pela perfeição das formas, como resultado da atividade mental do poeta, não exercendo a natureza nenhum papel na geração das mesmas. 


Se os filósofos iluministas incansavelmente pregaram que o universo material é o único objeto epistemológico creditável, Blake e os Românticos ergueram-se com determinação ideológica para defender a autonomia da imaginação, colocando-a em pé de igualdade com a Razão. 


Apesar de tudo, William Wordsworth (1770-1850), o poeta laureado de primeira geração, não vai tão longe como os outros Românticos no relegar da Razão para uma posição inferior à da Imaginação. Aquele que ficou conhecido como o Bardo preferiu conferir uma nova dignidade ao termo e insistir que a ‘visão inspirada’ é ela mesma racional e que a mera ‘criação’ não é suficiente exigindo do artista uma apurada reflexão. 


Penso que a imaginação é uma representação da complexidade da vida, por isso ela está sempre criando uma inevitável turbulência emocional (Bion, 1987) - comum a toda criação. 


Quando estamos trabalhando com a complexidade em psicanálise e aplicamos o Princípio ético-estético da Incerteza (Chuster, 2002, 2018) e consideramos as alterações na observação produzidas pelo observador, a tensão fica maior, e faz-se imperativo considerar que, de fato, somente em um passo à frente, no futuro que ainda não aconteceu, é que encontramos uma continuidade de pensamento ou mesmo o pensamento em si sendo criado. 


Pode parecer uma contradição se digo que o que penso não está no presente, mas no amanhã que ainda não aconteceu. Entretanto, tal contraditório existe apenas no determinismo psíquico, não na teoria da complexidade pela qual se acolhe as hipóteses mais imaginativas e fictícias, como também aquelas que constituem o lugar-comum. Através do pensar complexo podemos harmonizar continente e conteúdo, fazê-los coincidir e assim gerar um tipo de transformação do conhecimento em direção ao Ser: a transformação de K->O.


Posso novamente aproximar minhas afirmativas acima do “misticismo filosófico” notavelmente representado por William Blake. Blake certamente não era filósofo, mas enquanto poeta era um visionário, e assim evolui para restaurar um ponto onde não se pode separar a poesia da filosofia, ao dizer: “ Eu escrevi esse poema ao mesmo tempo sem nenhuma reflexão e contra a minha vontade...não fui nada mais do que um secretário. Os autores permanecem na eternidade”.


De certa forma, Blake está se livrando de suas memórias e de seu desejo para explicitar o que causa o seu ato poético


No “Casamento do Inferno com o Céu”, Blake afirma que a razão pela qual Milton escreveu Paraiso Perdido foi o fato de ter tanto de poeta verdadeiro, “quanto de parte com o Diabo sem o saber”. Observe-se que a visão artística e literária de Blake apreende o processo de criação associando a queda do conhecimento prévio, mostrando que não é o conhecimento que nos faz mudar, mas o enigma que nos invade. Esse enigma é “O”, que é tanto um Onthos quanto um Opus (Chuster, 2014, 2018, 2021)


Quando tentamos encontrar uma linguagem para expressar o enigma, ela estimula o pensamento enquanto abre para as emoções, que são subjetivas e nada acrescentam as narrativas sobre o mundo. O resultado necessariamente não aumenta o conhecimento, embora possa ser um prelúdio para o espaço do Ser através dessas emoções.


Suponha, no entanto, que o discurso narrativo usurpa nossas observações, substituindo o que poderia fazer emergir a experiência emocional (Bion, 1962). Neste caso, torna-se uma linguagem de Substituição. Ela substitui a ação e não é prelúdio; ou seja, retira o potencial criativo da pré-concepção, podendo transformar-se em crenças e dogmas, e inibir a matriz amorosa geradora do prelúdio e da ação (Bion, 1970).


Narrativas são sempre o produto de memórias e desejos, obscurecem o enraizamento primário do Ser e endossam uma visão não-crítica da realidade que se transforma em um conceito de verdade-adequação_ que coincide com a produção de falsidades e mentiras. 


Para ir numa direção diferente das narrativas preciso da poiesis, assim me refiro a todos citações poéticas de Bion como um vigoroso modelo de descrição do espectro reverie/função alfa para o trabalho do analista em busca de uma linguagem que faça de sua conversa algo a mais. Cito Bion (1965): a interpretação deve fazer algo mais do que aumentar o conhecimento do analisando sobre si mesmo. Esse algo mais, fornecido pela estética das emoções e pela ética da sinceridade pode favorecer o tornar-se o Ser que verdadeiramente somos, e gerar algo que melhora a qualidade da vida psíquica. 


A linguagem de alcance psicanalítico é uma espécie de poética da exatidão porque fala de sentimentos. Os sentimentos têm precisão matemática, assim explicitou Bion, e criam uma cesura que é como uma diferença transcendental para um momento específico do vínculo analítico. O poema de acordo com Paul Valéry, vive entre o matemático que deixando de ser um delirante de soslaio fica à serviço de um sonhador refinado.


Utilizo a expressão diferença transcendental como um sinônimo pessoal para o enigma, para “O” ou para a pré-concepção. A expressão propõe um diálogo em Bion sobre a psicanálise como uma prática da transcendência, cuja poiesis nos tira da ética dramática voltada para a morte, e nos traz com a ética trágica da incompletude para o contexto de uma linguagem que tem uma matriz amorosa pela verdade (Bion, 1970). 


As afirmativas acima me levam a propor para a psicanálise o adjetivo de atividade prático-poiética (Chuster, 1997, 2006, 2021). Penso que essa é a mais antiga definição da techné, aquela que está em Homero, significando o decifrar de um enigma que faz trazer algo à tona (Chuster, 1997, 2014, 2018, 2021), ou fazer ser_ sem perder o vigor do enigma_ o que era para vir a ser.


A psicanálise é prática porque seus participantes são parte ativa no processo, sendo o analisando o agente principal de sua transformação. 


A psicanálise é poiética porque é criativa, seu resultado confere uma nova forma de se relacionar com o inconsciente, promove o uso da estética das emoções na descrição do mundo, e nos leva também ao universo ético-estético da liberdade de pensamento.


Notas


1 Médico Psiquiatra e Psicanalista. Membro Efetivo da SPRJ, do Newport Psychoanalytical Institute, Califórnia, e do Instituto Bion, Porto Alegre. Autor e coordenador de seminários sobre a Obra de Bion.


2 A mudança é catastrófica no sentido que o estado anterior nunca pode ser totalmente reconstituído. Entretanto, apesar de toda atividade desconstrutiva, ela é poiética _ é uma forma de criação: uma transformação. O que é criado é precisamente o advento de um novo sujeito, nunca dado, mas duramente conquistado no curso de uma luta por liberdade interna que as palavras e a escuta tentam alcançar no processo da análise.


3 A imaginação, bem trabalhada no texto Transformações (1965) se refere a criação de um modo que nenhuma filosofia, com exceção de Castoriadis (que era também psicanalista) dá conta. Todos falam de produção, desde Kant até Marx. A criação implode a ontologia tradicional, que é uma ontologia determinística, onde se exclui a possibilidade de novas determinações.


4  "The Imagination, that is, God Himself", "creating Space, Creating Time according to the Wonders Divine of Human Imagination".


5 Mas qual é a natureza exata da imaginação para Blake? Ele apresenta uma resposta possível em A Vision of the Last Judgment (1810): The Nature of Visionary Fancy or Imagination is very little. Essa afirmativa parece remontar à tradição platônica e referir-se aos princípios primários das coisas. O artista declara explicitamente que é para o ‘mundo infinito e eterno da imaginação’ que a alma humana caminha após a morte: “This world of Imagination is the World of Eternity; it is the Divine bosom into which we shall all go after the death of the Vegetated body”. Como consequência, a imaginação é simplesmente equiparada ao ‘corpo divino’ que reside dentro de todo e qualquer indivíduo.


6 Do mesmo modo, Blake reafirma a natureza da imaginação como um espelho essencialmente espiritual do homem e, ao mesmo tempo, estabelece uma distinção já familiar entre fantasia e memória: " Imagination is the Divine Vision not of The World nor of Man nor from Man as he is a Natural Man but only as he is a Spiritual Man. Imagination has nothing to do with Memory ". Assim, como Bion tanto ressaltou, a memória atrapalha a visão e faz com que uma obra de arte não consiga libertar-se de defeitos como a convenção, a artificialidade e a imitação (que são produtos de desejo).


7  Não nos surpreende, assim, que ele escreva no seu poema mais importante que a imaginação “Is but another name for absolute power / And clearest insight, amplitude of mind, / And Reason in her most exalted mood.” (The Prelude, XIV, 190-2). 


8  Blake, W. Casamento do Inferno com o Céu, Lp&M books, 2008.



 
 
 

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